terça-feira, 21 de janeiro de 2014





. primeira parte .


Por Fernando Liguori


[Satsanga realizado durante os nove meses do Curso de Aprofundamento em Yoga ministrado pelo Instituto Kaula em 2011.]


O tema de nosso último encontro foi A Evolução da Consciência & Energia. Naquele dia nós falamos acerca do nascimento da mente, quer dizer, sua fonte e os mecanismos de suas funções ou compartimentos. Hoje nós vamos dar continuidade ao estudo da mente. O ocidental tem uma maneira muito peculiar de enxergar a mente. Ele não consegue ver o panorama total da mente e as expressões de suas funções. Quando eu peço a vocês, na hora da condução da prática meditativa, para que estejam conscientes de seus corpos, o que vem a mente na hora? Todo o corpo e seus sistemas ou apenas uma parte dele, um órgão, um membro etc.? Não, quando pensamos no corpo, imaginamos sua totalidade. É a mesma coisa com a mente. Quando pensamos na mente devemos imaginar sua totalidade, da mesma maneira que fazemos com o corpo. Mas quando o ocidental pensa na mente, imagina apenas uma fração dela, pensando ser toda a sua expressão, mas não é. O que o ocidental identifica como mente é o que chamamos de manas, um aspecto da mente, um aspecto «inferior» cujas funções são saṅkalpa e vikalpa, quer dizer, claridade e confusão, foco e distração. Isso ficará mais claro daqui a pouco.

Hoje nós iniciamos a prática pela manhã com o mantra śāntiḥ, um mantra que nos coloca no descanso interior, paz e indiferença às manifestações externas a mente. Propus de iniciarmos o dia com este mantra porque ele representa o saṅkapa de qualquer aspirante que deseja melhorar sua qualidade de vida. Cada verso deste mantra é uma aspiração, uma afirmação, um objetivo a ser conquistado na vida. Ele diz: leve-me do irreal ao real; leve-me das trevas à luz; leve-me da mortalidade a imortalidade; que o bem-estar prevaleça; que a totalidade prevaleça; que a auspiciosidade prevaleça; que todos os seres sejam felizes e contentes. Mas qual a finalidade deste saṅkalpa? Sua finalidade é mudar a qualidade e a expressão da mente. A validade inerente ao saṅkalpa é sua eficácia, pois qualquer expressão, injunção ou afirmação que não mude a qualidade e o comportamento da mente não passa de um pensamento, um desejo ou devaneio onde o sonhador acorrentado torna-se incapaz de realizá-lo na vida.

Todos nós sabemos o que um saṅkalpa, correto? É uma energia focada e concentrada da mente. Este poder ou força da mente tem de ser domado, subordinado e canalizado. E isso não é fácil! A vida é uma expressão da mente. É a mente que guia cada ação e reação, ideia e pensamento, desejo e expectativa. Portanto, ela é o fator de maior motivação, mas na mesma medida é um princípio desalentador.

A fim de conhecermos a mente, temos de saber de onde ela vem, qual é a sua fonte. No nosso último encontro nós falamos que a fonte da mente é a consciência em uma dimensão trans-sensorial. Essa é a dimensão da «substância primordial». Para que todos possam entender, vou chamar essa substância primordial de Deus. No contexto do hinduísmo, Brahman. Nesta substância primordial ou Deus, duas forças coexistem em harmonia: consciência e energia. Estes dois princípios em inteiração proporcionam o entendimento mental e a experiência sensorial do mundo. Toda criação e a vida são expressões da interação entre consciência e energia. A energia se manifesta na vida como o prāṇa e a consciência como a mente. A vida emerge da inteiração destas duas forças nas dimensões cósmicas da existência. Assim, cada vida é governada por prāṇa e mente.

Sendo a vida um processo de interação entre estes dois princípios ou forças, a mente e prāṇa estão manifestos em toda parte. Uma bactéria possui mente e prāṇa. Não cérebro, mas mente! Animais, vegetais, minerais etc., tudo, absolutamente tudo, possui mente e prāṇa. O corpo humano é governado e dirigido por prāṇa e mente. Portanto, a cognição ou consciência cósmica é representada pelo princípio da consciência. A consciência «contida» ou individual é conhecida como mente.

Podemos nos arriscar a dizer que a vida é uma expressão da mente, pois tudo o que nós experienciamos na vida é a mente. É um equívoco confundir a mente com a consciência. Por exemplo, uma árvore possui um tronco. Este é seu corpo, seu suporte. Do tronco emergem diferentes galhos. Estes galhos fazem parte do troco. Eles são feitos da mesma substância que o troco da árvore, mas suas funções são outras. Da mesma maneira, a mente é composta do mesmo estofo da consciência, mas não é a consciência; ela deriva da consciência. É uma ramificação, uma expressão da consciência, guiada pelos canais das correntes sensoriais.

O Sāṃkhya em sua teoria evolucionista considera a mente como uma parte integral da criação. Essa escola de pensamento atesta que a primeira entidade em existência eterna é Brahman. Essa entidade ou identidade incorpora em si mesma as faculdades e poderes da energia e consciência. Na tradição espiritual da Índia, Brahman é sempre identificado como a Consciência ou Espírito Cósmico.

Como falei a pouco, no estado de Brahman, energia «śakti» e consciência «cetana» permanecem em absoluta harmonia e integridade. Contudo, quando a vida emerge devido a uma incognoscível pulsação «spanda» na dimensão da energia e consciência, ela adquire o poder destes dois catalisadores para criar e se estabilizar. Assim, o corpo se torna matéria, governado pelo prāṇa, seu componente ou Śakti manifesto. Tudo o que é visível como forma, matéria ou corpo é governado, dirigido e controlado por esta Śakti na forma do prāṇa. Além da matéria ou corpo material, existe uma força sutil responsável pela evolução e experiência da verdadeira natureza humana e do espírito, e ela é uma com o cosmos. Este poder ou força sutil é a consciência, experienciada na vida como a mente.

Imaginemos a luz do sol. Ela se espalha uniformemente por toda parte. Mas quando passa pela janela da sala iluminando apena um local é percebida como um raio solar. O raio faz parte da luz do sol que a tudo permeia, mas quando ele entra na sala através da janela não dizemos: o sol está entrando pela janela. Mas sim, um raio do sol está entrando pela janela. Consciência e mente devem ser entendidas da mesma maneira. A mente é o aspecto manifesto da consciência. A consciência cósmica é indivisível, infinita, onisciente. Essa é sua forma essencial. Contudo, quando ela se manifesta no corpo no curso da evolução, a lei da natureza faz a sua parte e ela é experienciada na forma da mente. Portanto, o que é chamado de consciência nas dimensões cósmicas da existência é chamado de mente na vida, no corpo.

As upaniṣads descrevem Brahman como o cubo de uma roda, enquanto Śakti ou Pṛakriti como os raios da roda. Os raios são circundados por uma sólida esfera que os mantém unidos. Isso é a mente, mahat, a mente cósmica. Essa mente tem suas funções enquanto incorporação física. Através do gerenciamento destas funções, a paz interior é alcançada, abrindo caminho para fundação de uma verdadeira estrutura espiritual, equilibrada e pacificante. Nessa direção, o sādhanā mais efetivo na vida é o gerenciamento da mente, não a meditação. Um estado de consciência elevado se manifesta nas respostas que a mente tem em diferentes situações da vida. Mas esse é o objetivo do Yoga: melhorar a qualidade de vida para que nos tornemos conscientes de nós mesmos e de nossos potenciais, vivendo esses potenciais aqui, agora. Portanto, o objetivo último, assim me arrisco a dizer, não é a experiência da iluminação, mas o gerenciamento da mente. Quando a harmonia interior é experienciada, o Yoga se torna um estilo de vida no qual nos conectamos com todos os seres em espírito de serviço e compaixão.

A Mente e o gerenciamento de suas funções

Mahat significa «a grande mente». É o princípio mental mais elevado, cujas funções são: ahaṃkāra, o ego ou autoidentidade; citta, impressões, memórias e saṃskāras; buddhi, inteligência; e manas, a mente finita e sequencial. Essas quatro funções envolvem toda experiência da vida. O Sāṃkhya e o Yoga também se referem a mahat como antaḥ-kāraṇa, o instrumento sutil, meio ou agente que permite a experiência e a expressão da vida.

O princípio sutil da grande mente é o ego, ahaṃkāra. Não o ego no sentido pejorativo da palavra, expresso como arrogância, mas o ego no sentido de autoidentidade, autoconsciência, conhecimento de «mim mesmo», de «eu existo».

O ego se manifesta de quatro maneiras distintas: avidyā, abhiniveśaḥ, māyā e asmitā. O ego está conectado e sujeito ao movimento sinuoso dessas quatro expressões. Avidyā significa ignorância e uma das funções do ego é suprimir o conhecimento. Com a supressão do conhecimento, jñāna – a verdadeira gnose – não se manifesta; ao contrário, ajñāna, avidyā ou falta de conhecimento se tornam a expressão da vida. Se vocês observarem as pessoas arrogantes e egoístas, notarão que as portas para o aprendizado e portanto do conhecimento estão fechadas para elas, quer dizer, nelas. Elas não estão dispostas a abrir estas portas para compreender e apreciar qualquer outra realidade além de sua percepção condicionada. Avidyā influencia o comportamento e a percepção do ego. No estado de avidyā o que existe é escuridão total, falta de luminosidade. Como diz Swami Niranjan, «a luminosidade do ego intoxicado por avidyā é um brilho opaco no semblante humano».

A palavra sânscrita abhiniveśaḥ, significa desejo de entrar, mas o comentador Vyāsa explica como se fosse apenas o apego à vida, o que faz com que o indivíduo sinta como se fosse durar eternamente. No entanto, a palavra expressa com mais clareza ainda o desejo de fazer parte, ou seja, de se integrar socialmente com algum grupo. Essa é uma das mais fortes motivações que nos levam ao erro, de fato, pois o desejo de integração nos faz duvidar de nossos próprios valores em favor dos valores compartilhados pelo grupo. Para que vocês possam ter sucesso em sua prática, não devem ter medo de ficarem sós, nem duvidarem de si mesmos por se sentirem diferentes do grupo. É muito importante para sua realização pessoal que vocês escutem atentamente seu coração e que não se envolvam em relacionamentos de qualquer natureza, sob nenhuma hipótese, que estejam em conflito com suas crenças e valores morais. Nem devem também se sujeitar a situações nas quais sua opinião ou sua capacidade de decisão tenham de ser anuladas, a qualquer pretexto. Este é o sentido de abhiniveśaḥ, que se manifesta como insegurança e medo de perder a si mesmo, de simplesmente abrir a mão e deixar ir, de morrer.

O ego também se manifesta como māyā, ilusão. É através de māyā que o ego faz com todos se sintam maiores do que realmente são, da mesma maneira, vendo os outros com diminuição, fazendo-os parecer serem menores.

O ego também se manifesta como asmitā, o conhecimento de que «eu existo», «eu sou». É para proteger o conhecimento de que «eu sou» que o ego se manifesta. Por exemplo, se alguém proferir palavras torpes a você, seu senso de identidade será ferido. Todos os conflitos da vida, sejam no âmbito familiar ou social, são creditados a asmitā.

Todas essas expressões egóicas são inerentes ao princípio do ego. Elas não têm poder quando estamos conectados com a fonte infinita de luz, mas se tornam forças poderosas quando estamos conectados ao exterior, ao mundo com os objetos dos sentidos, com Prakṛti.

Egodectomia

O ego é o obstáculo mais difícil no caminho espiritual. Como nos tornamos conscientes de nosso ego? O exemplo do espelho é bem apropriado: você não pode ver o seu rosto a não ser que fique na frente de um espelho ou outra pessoa lhe diga como está sua aparência. Se alguém lhe diz «você está acabado», imediatamente sua reação será negativa. Se alguém lhe chama de arrogante, isso é o suficiente para que ela se torne sua inimiga. Você reage abruptamente a qualquer pessoa da mesma maneira que não reconhece a si mesmo.

Os yogīs vêm nos alertando desde os tempos imemoriais que o ego é o último obstáculo a ser superado no processo de autorrealização. Portanto, nos estágios finais da senda iniciática o praticante precisa da orientação e inspiração de um Guru. As práticas podem ser executadas em qualquer hora ou lugar. O Guru não é necessário para isso, mas é necessário para nos auxiliar a superar este último obstáculo, o ego. O Guru canaliza o ego e muda sua direção. Este processo é chamado de egodectomia. Infelizmente, não são todos os buscadores que estão preparados para este processo de dissecação do ego. Por conta disso, os Gurus têm poucos discípulos. Eles possuem milhares de iniciados, mas um ou dois discípulos cujo processo de egodectomia pode ser aplicado.

Este é um processo de morte e ressurreição. O antigo ser tem de morrer. A carapaça egóica precisa ser quebrada para que a semente possa germinar. Se a carapaça for muito forte a ponto de tornar-se indestrutível, então a vida continuará a ser a tormenta da mente. O processo de destruição desta carapaça, portanto, chama-se egodectomia.

O gerenciamento do ego através de sanyam

Muitas pessoas me perguntam como reconhecer o ego. Eu sempre digo que a melhor maneira para se reconhecer o ego e suas manifestações é a meditação, mas a melhor maneira de se gerenciar as expressões limitantes do ego é através de sanyam, restrição. Quando sanyam faz parte de nossa vida, nada pode nos perturbar. Na sua falta, poucas palavras bastão para nos perturbar e criar um estado alterado e distorcido na mente. Se alguém lhe insulta, a paz na mente deixa de existir por conta da reação do ego. Se sanyam existe, não importa quem lhe insulta ou como isso acontece, você não reagirá, não irá ficar firulando.

Assim, para administrar as manifestações do ego, primeiro é necessário reconhecê-las através da meditação e então controlá-las através da restrição. O exemplo do elogio e do insulto é perfeito aqui. Usualmente, o insulto irá lhe tirar de seu centro profundamente e o elogio lhe trará um orgulho imediato. Elogio e insulto são como o balanço de um pêndulo, sempre se movimentando de uma extremidade a outra. Vocês enfrentam a situação deste pêndulo a todo instante na vida, na interação com os familiares, os amigos de trabalho e a sociedade em geral e sua atitude é sempre a mesma: você reage e tenta justificar suas atitudes na tentativa de provar que é uma boa pessoa. Seja lá o que você projeta, insulto e elogio sempre lhe afetarão. Esse efeito não é experienciado em manas, buddhi ou citta, mas nos domínios do ego.

Se alguém lhe chama de cachorro, isso lhe insulta. Se o ego estiver à flor da pele, como se diz, você pode até mesmo se imaginar na forma do cachorro. Essa sensação torna-se tóxica, gerando ansiedade. Qual a parte de mahat foi afetada aqui? Não é manas ou buddhi. Se buddhi entra em ação neste momento, você percebe que não é um cachorro, não importando o que digam a seu respeito. Você dirá: «esta pessoa não me conhece; seja lá o que ela fale ou propale a meu respeito, isso não constitui problema meu, mas somente dela». Buddhi irá restaurar o equilíbrio. Claridade de pensamento rapidamente irá lhe libertar desta situação negativa. Contudo, o intelecto e a razão quase nunca entram em ação nestes momentos, isso faz com que o ego reaja, criando a sensação do desconforto, dor, aversão, depressão e destrutibilidade.


O contraforte para o ego é sanyam. O primeiro entendimento acerca de sanyam é permanecer inalterado sob quaisquer circunstâncias. Se vocês conquistarem sanyam dos sentidos, da mente, da fala, interação e comportamento, estarão aptos a confrontar os ataques impiedosos do ego. Contudo, a restrição dos sentidos, da mente e da fala são métodos práticos para se cultivar sanyam, mas seu real significado é a capacidade de se permanecer não afetado. Se vocês permanecerem não afetados em todas as circunstâncias, estarão vivendo em sanyam. Vocês serão mais joviais, contentes e pacíficos.
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