quarta-feira, 29 de janeiro de 2014


Fernando Liguori

As upaniṣads são consideradas ou estão contidas nas escrituras do Vedānta. A palavra upaniṣad é o nome de um assunto determinado, o autoconhecimento, assim como as palavras geografia e biologia são nomes que denotam assuntos específicos. Então, o significado da palavra upaniṣad é autoconhecimento.

A palavra por si só é composta por dois prefixos (upa e ni) e uma palavra sat ou sad, da raiz ṣad. Esta raiz tem um significado triplo: desgastar (visaranam); por fim a (avasadanam) e atingir ou conhecer (gamanam). A palavra sat é o agente da ação indicada por sua raiz e, portanto, significa aquilo que se desgasta, que se põe um fim e que faz você alcançar, atingir ou conhecer.

Desde que a raiz ṣad tenha esses três sentidos, precisamos ver se todos os três são aplicáveis aqui ou apenas um ou dois. Achamos que todos os três se aplicam, como é evidenciado pela palavra ṣat por si só e pelos dois prefixos upa e ni. O prefixo ni significa exatidão, aquilo que é bem apurado. Por isso, conhecimento é chamado ni e o prefixo upa significa aquilo que está mais próximo.

O que está mais próximo de si mesmo é o «eu», o ātma, e sobre esse «eu» existe uma confusão. O que eu tenho que saber para remover esta confusão não está longe de mim, porque não é uma outra coisa além de mim mesmo e a sentença «mais próximo» aqui é usada pela falta de uma palavra melhor. Então, os dois prefixos juntos, upa-ni, significam o conhecimento preciso de si mesmo.

Este conhecimento destrói as aflições de alguém, o que significa que elas se desintegram, fracassam e não retornam, quer nesta vida ou em qualquer outra. O autoconhecimento as remove por bem e isso ocorre porque a raiz da aflição é a ignorância sobre si mesmo. Então, o autoconhecimento remove a causa da aflição tão completamente que coloca um ponto final ao efeito também.

Assim como uma árvore que foi cortada, não crescerá de novo pois suas raízes foram completamente destruídas e a aflição não voltará, uma vez que a sua causa, que era a ignorância de si mesmo, foi removida pelo autoconhecimento.

A ignorância do fato de que o Ser ou Eu (ātma) é o todo (Brahman) é a causa de todas as aflições e essa ignorância vai na esteira do conhecimento. Como isso acontece? O conhecimento de si mesmo permite que se reconheça o fato de ser um Brahma (brahma-gamayati) e este reconhecimento é o próprio conhecimento em si.

O autoconhecimento, então, é o assunto que se chama upaniṣad, encontrada na última parte dos Vedas. A palavra Vedānta indica a localização da matéria em questão, com anta significando fim. Assim, Vedānta é upaniṣad. A palavra upaniṣad em si revela o desejo de buscar esse conhecimento, porque seu resultado é o fim da aflição.

O autoconhecimento é algo que se pode adquir – e para que isso ocorra é necessário que haja um meio de conhecimento (pramana) e este meio de conhecimento é o Vedānta, que está na parte final dos Vedas, cujo assunto em destaque é a upaniṣad, o autoconhecimento.

O assunto por si só se torna o nome dos livros de Vedānta – as upaniṣads. O plural é usado porque há quatro Vedas e, portanto, quatro antas ou fins. Coletivamente, eles são referidos como upaniṣad, mas, com referência ao assunto em questão, há apenas um. Não existe plural, só há upaniṣad.

As upaniṣads estão na forma de vários diálogos e cada diálogo é chamado upaniṣad, sendo que o assunto é o mesmo. Uma vez que o assunto tratado é o mesmo, cada livro é também chamado upaniṣad, depois de seu tema, assim como um livro sobre a história brasileira tem o título História do Brasil. Aqui, também, um livro sobre o autoconhecimento é chamado de autoconhecimento, que é o significado de upaniṣad.

A Yogacūḍāmaṇi-upaniṣad

Yogacūḍāmaṇi é a Jóia da Coroa do Yoga. Cūḍāmaṇi é a junção de duas palavras: cūḍā que significa coroa e se refere também ao tufo de cabelo usado na parte de trás da cabeça pelos sacerdores brâmanes; maṇi que significa jóia. A Yogacūḍāmaṇi é um texto único e conciso que compreende cento e vinte e um mantras que tratam da prática do kuṇḍalinī-yoga como meio para se atingir a realização proposta pela filosofia do Vadānta. O autor é desconhecido e o texto é muitas vezes associado ao Sāma-Veda. Ele foi redigido por volta dos Sécs. XVI e XVII, período em que a tradição tântrica renascia dos escombros sociais, ganhando notoriedade e popularidade.

A Yogacūḍāmaṇi é um texto no qual não existe uma demarcação clara entre os sistemas do haṭha-yoga e kuṇḍalinī-yoga.[1] Alguns acadêmicos tentaram relacionar o conteúdo prático desta escritura com o haṭha-yoga, entretanto estas práticas estão no campo do kuṇḍalinī-yoga, pois tratam diretamente do despertar dos prāṇas, nāḍīs, cakras e a kuṇḍalinī. Nos tempos antigos, quando os videntes das upaniṣads exploravam a prática e a doutrina tântrica, o kuṇḍalinī-yoga compreendia todas as práticas do haṭha-yoga, exceto as seis ações tradicionais de purificação, os ṣaṭ-karmāṇi.

O haṭha-yoga foi considerado um sistema de purificação física e prânica, enquanto que o kuṇḍalinī-yoga foi considerado um sistema esotérico que envolve o despertar das energias psíquicas latentes e esteve restrito a prática oculta dos adeptos. Gradativamente, ao longo do tempo, os āsanas, prāṇāyāmas, mudrās e bandhas, todos componentes do kuṇḍalinī-yoga, foram absorvidos no sistema do haṭha-yoga por conta de sua natureza física. A relação entre o haṭha e o kuṇḍalinī-yoga não foi reconhecida frequentemente pelos acadêmicos, portanto, a ênfase prânica e psíquica da prática foi gradualmente perdida. A Yogacūḍāmaṇi é, assim, uma fonte importante para literatura yogī que nos relembra o propósito esotérico intrínseco as práticas do kuṇḍalinī-yoga que foram consideradas parte do haṭha-yoga.

Um esboço do texto

O texto se inicia com os seis membros do Yoga: āsana, prāṇāyāma, pratyāhāra, dhāraṇā, dhyāna e samādhi. Segue descrevendo os seis cakras, os dezesseis ādhāras (suportes), os três lakśyas (objetivos) e os cinco vyomas (espaços) do Yoga. Esta parte do texto tem forte afinidade com a ciência do Tantra e lida em profundidade com os cakras inferiores – mūlādhāra, swādhisṭhāna e maṇipūra, que não são citados com frequência em outras upaniṣads ou textos clássicos do Yoga por conta de sua relação com a natureza instintiva do homem. Ênfase especial é dada a origem, localização e função das dez nāḍīs ou canais de energia principais, incluindo iḍā, piṅgalā e suṣumṇā. Os prāṇa-vāyus são discutidos em detalhe, assim como uma relação entre o jīva, a alma e os três guṇas que constituem a prakṛti. O texto segue provendo uma descrição do ajapa-gāyatrī, um conhecimento arcaico védico e das upaniṣads, demonstrando uma integração harmoniosa destes dois sistemas.

Seguindo essa detalhada discussão acerca da fisiologia do Yoga e do ajapa-gāyatrī, a kuṇḍalinī é descrita junto ao seu caminho, o método para despertá-la, a diéta necessária e as observações disciplinares. Mais a frente o texto lida com a teoria dos bindus branco e vermelho, o rajas e o shukla, que representam as forças vitais e da cosciência ou masculinas e femininas. Este é um conceito tântrico importante que completa a doutrina por trás da kuṇḍalinī e que foi omitido deliberadamente de muitos textos yogīs posteriores, devido a sua associação com os aspectos sexuais do Tantra. O processo de retenção e reversão dos bindus são descritos abertamente, com clareza, assim como as práticas relevantes utilizadas nos vários estágios do processo. Neste contexto, diversas mudrās e bandhas importantes tais como a khecarī, vajrolī e mahā-mudrā e mūla, uḍḍīyana e jālaṃdhara-bandha são descritos com riqueza de detalhes.

A partir deste ponto o texto apresenta uma inclinação ao Vedānta, discutindo os estados de consciência em relação ao pranava ou auṃ e como Brahman se manifesta na forma do pranava. O significado e a simbologia do pranava são discutidos em detalhes, de acordo com o sistema de filosofia e prática do Vedānta. A discussão continua relacionando as três deidades superiores, as três śaktis ou poderes e os três lokas ou dimensões da existência, com as três letras «A», «U» e «Ṃ», que juntas formam o mantra auṃ. É destacada a importância do pranava como disciplina meditativa ou upāsana, o que leva o praticante a esfera sutil do nāda-yoga que é explanado de maneira rica e consistente.

O texto segue dando ênfase ao controle e a retenção do prāṇa, o que resulta em longevidade. A fim de se controlar e reter o prāṇa é necessário a prática do prāṇāyāma. Métodos como o pranava-prāṇāyāma, candra-bhedana, sūrya-bhedana, nāḍī-śodhana e a kumbhaka são descritos com seus significados esotéricos ocultos e formas de concentração, o que não é encontrado em outras upaniṣads e textos do Yoga. A escritura volta a abordar os membros do Yoga, seus benefícios e progressões. É esperado que neste estágio do texto o praticante já tenha atingido certa proficiência nas práticas yogīs, deixando de lado a tendência intelectual exclusivista.

A Yogacūḍāmaṇi é um manual avançado de prática espiritual que serve tanto a adeptos avançados quanto a praticantes iniciantes. Ela trata do despertar da kuṇḍalinī em sua forma mais pura e original, antes da proliferação a literatura yogī moderna. Mantra a mantra, o texto indica meios de transformação interior adequados, o que leva o aspirante aos aspectos mais profundos da prática do Yoga e sua culminação na expansão da consciência e auto-realização. Portanto, o texto se torna a prova prática e experimental da compatibilidade entre o Yoga e o Vedānta.




[1] Quando nos referimos ao kuṇḍalinī-yoga, não falamos do sistema de yoga criado pelo Yogī Bhajan e que recebeu o mesmo nome. Kuṇḍalinī-yoga, conforme os ensinamentos dessa escritura, refere-se ao laya-yoga, cujo foco é o despertar da kuṇḍalinī e sua ascensão através dos cakras. Veja os livros Kundalini Yoga de Śrī Swāmi Śivananda Saraswatī e Kundalini Tantra de Śrī Swāmi Satyānanda Saraswatī.

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