domingo, 25 de maio de 2014




Fernando Liguori


Estudos sobre as técnicas de Yoga ensinadas por Mahāṛṣi Gheraṇḍa ao seu aluno, o rei Caṇḍakāpāli na Gheraṇḍa-saṃhitā. Grupo de Estudos Kaula, 2014.



O corpo das criaturas vivas é o resultado das boas
e das más ações. O corpo dá origem à ação e assim
o ciclo continua como um moinho de água. Dessa
maneira, o ciclo da vida e da morte de cada
indivíduo é movido por suas ações ou karmas.
O corpo invariavelmente se desfaz como uma
vasilha de barro sem cozimento quando
submersa em água. Por isso se deve moldar
o corpo no fogo do Yoga.

Mahāṛṣi Gheraṇḍa


A Gheraṇḍa-saṃhitā, um manual ou compêndio sobre haṭha-yoga, escrito por Mahāṛṣi Gheraṇḍa na forma de ensinamentos ao seu aluno, o rei Caṇḍkāpāli, é uma escritura de 351 ślokas divididos em sete upadeśas (capítulos). A prática ensinada nesta escritura ao rei é conhecida como sapta-sādhanā, compreendendo sete etapas:

1.    ṣaṭ-karmāṇi: seis técnicas de purificação que originalmente formavam o escopo do haṭha-yoga. São elas: neti (limpeza nasal), dhauti (limpeza da cabeça e de todo canal alimentar da boca ao ânus), basti (limpeza do intestino grosso), nauli (massagem das vísceras), kapālbhāti (um tipo de prāṇāyāma) e trāṭaka (um método para concentrar a mente).
2.    āsana: posturas físicas para fortalecer a estrutura corporal e torná-la estável.
3.  mudrā: técnicas para dirigir e controlar a energia vital. O sábio Gheraṇḍa acreditava que o prāṇa aquece e energiza o corpo. No curso do sādhanā, quando o buscador senta-se em āsana por longos períodos de tempo, um calor é produzido no interior do corpo. A temperatura do corpo cai quando prāṇa-śakti não é controlado em seu interior, causando a dissipação da energia. As mudrās, no entanto, contêm a energia dentro do corpo, evitando sua dissipação.
4.  pratyāhāra: uma técnica na qual os sentidos são controlados e a mente se internaliza de maneira natural e espontânea. Após o corpo ter sido curado pelas ações de purificação, ter atingido firmeza e estabilidade através das posturas e ter o prāṇa controlado e equilibrado pelas mudrās, então vem a próxima etapa, pratyāhāra. Gheraṇḍa acreditava que no estado de pratyāhāra, quando a mente se torna internalizada e unidirecionada, é mais fácil despertar os prāṇas. Segundo ele, pratyāhāra é o estado onde não é preciso esforço para despertar os prāṇas e a mente se aquieta de maneira natural.
5.    prāṇāyāma: técnicas para expansão da capacidade pulmonar, aumento da energia vital e controle dos vāyus. Geralmente, na prática de prāṇāyāma conforme os śāstras do haṭha-yoga, a entrada e saída do ar é controlada e a duração da inspiração e expiração é equilibrada. Mahāṛṣi Gheraṇḍa segue essa tradição, mas ao invés de uma contagem convencional do tempo, ele sugere o uso de mantras. Todos os prāṇāyāmas mencionados na Gheraṇḍa-saṃhitā são praticados com mantras. Incluindo os mantras, a prática de prāṇāyāma torna-se mais poderosa. Quando o mantra é entoado junto com a respiração, o efeito de suas vibrações aumenta a concentração e a produção de energia prânica. Através dos efeitos combinados de pratyāhāra e prāṇāyāma atinge-se o controle da energia desperta.
6.    dhyāna: este é o nome sânscrito para «meditação». Quando o prāṇa está desperto e a mente internalizada, a meditação ocorre por si mesma. O sábio Gheraṇḍa menciona três tipos de meditação: bhairaṅga-dhyāna (meditação externa), antaraṅga-dhyāna (meditação interna) e ekacitta-dhyāna (meditação unidirecionada). Na meditação externa existe a consciência das experiências criadas pelos sentidos e do universo externo; na meditação interna existe a consciência das experiências nos níveis mentais mais sutis e na meditação unidirecionada a realização interior ocorre.
7.    samādhi: estado de hiperconsciência onde a realização do sādhanā ocorre.

No segundo śloka, Caṇḍakāpāli utiliza o termo ghaṭastha-yoga ao perguntar como fazer para adquirir o conhecido da verdade «tattva-jñāna». Ele diz: ghaṭasthayogaṃ yogeśa tattvajñānasya kāranam,[1] i.e. «como pode o yoga, que é baseado no corpo, nos ajudar a conhecer a verdade?» Nesta sentença estão inclusas quatro indagações: 1. O que é a auto-realização? 2. O que é ghaṭastha-yoga? 3. Como este Yoga é praticado? 4. É possível conseguir o conhecimento da verdade através deste Yoga? Todas essas indagações nós teremos de dissertar em um ensaio posterior. No momento vamos nos concentrar apenas na segunda indagação: o que é ghaṭastha-yoga? A palavra ghaṭa significa śarīra «corpo», mas também significa «pote», «vaso», «vasilha», «jarro» ou «cântaro». Gheraṇḍa comparava o corpo físico a uma vasilha de barro cuja forma deu-se pelo auxílio da matéria e que continha os aparatos dos sentidos, mente, conhecimento, sabedoria, ego etc., todo o complexo da personalidade e todos os níveis de ser – tudo dentro do corpo que – como uma vasilha de barro crua – deveria ser moldado pelo fogo do Yoga. Portanto, ghaṭastha-yoga é o Yoga do corpo. Para Gheraṇḍa a auto-realização começava no corpo e através dele.

Quando imaginamos uma vasilha de barro, uma imagem nos vem à tela da mente. Nós vemos a imagem externa da vasilha, mas não sabemos o que contém nela. Seu interior é desconhecido para nós. A vasilha pode estar vazia, cheia de água ou qualquer outra coisa, pois só temos conhecimento de sua forma externa. Da mesma maneira, devido a natureza dissipada da mente, a maioria das pessoas experimentam o corpo e seu envolvimento com o mundo sem se preocuparem com outros elementos dentro do corpo. Quais são as diferentes energias dentro do corpo? Ninguém sabe. Por que executamos o karma na vida? Por que temos a capacidade de pensar? Qual é a natureza da energia que criou o corpo e despertou em seu interior outras energias? A maioria das pessoas não fazem a si mesmas essas perguntas. Mas é essencial aprendermos sobre esses elementos sutis de nossa constituição e que são responsáveis pela construção do corpo. Quando as práticas de Yoga baseadas no corpo se iniciam, um processo muito sutil de compreensão também se inicia. As práticas têm um efeito direto na mente, acalmando suas atividades. O efeito físico do Yoga baseado no corpo, segundo Gheraṇḍa, é sentido na mente. Uma vez que a agitação interna diminuiu e a mente se acalmou, conquistamos a paz interior. Neste nível de mente é possível executar todos os karmas e saṃskāras harmoniosamente, interrompendo o ciclo de morte e renascimento. É dito que quando a compreensão das energias físicas e sutis ocorre, ghaṭastha-yoga começa.

No quarto śloka, o sábio seleciona quatro «temas» a fim de explicar o Yoga que estava começando a ensinar ao seu aluno. Ele diz: nāsti māyāsamaḥ pāśo nāsti yogātparam balam, nāsti jñānātparo bandhurnāhankārātparo ripuḥ,[2] i.e. «Não existe maior grilhão que a ilusão e não há força mais poderosa do que o Yoga. Não existe melhor amigo do que o conhecimento e inimigo pior do que o ego.» Com essas palavras, é possível inferir a filosofia por trás de alguns ślokas da Gheraṇḍa-saṃhitā. O primeiro tema é a ilusão, indicada como um grilhão, cuja existência é temporária, portanto, algo falso, um símbolo da ignorância. Quando alguém vive na ignorância, permanece sobre o feitiço da ilusão. Subjulgado por ela, o homem segue atrás de prazeres e diversões. Absorto nos prazeres do mundo enquanto permanece esquecido de si mesmo e do significado de sua existência, tamanha a sua ignorância, cria e recria a ilusão ao seu redor. É por isso que Gheraṇḍa diz: nāsti māyāsamaḥ pāśo, quer dizer, não existe grilhão mais perverso do que a ilusão neste universo.

O poder do yoga

Nāsti yogātparam balam significa que não há força mais poderosa do que o Yoga. Mahāṛṣi Gheraṇḍa tinha o Yoga na forma de uma energia poderosa na qual as imperfeições da vida poderiam ser corrigidas e erradicadas, pois através desta força poderosa toda a personalidade, o corpo, a mente, o intelecto, os pensamentos, as emoções e o comportamento poderiam ser colocados sobre controle, tornando-se moderados e equilibrados. Ou seja, através do Yoga todo o desenvolvimento do complexo-personalidade pode ser conquistado. Desordens físicas podem ser curadas. A mente pode ser desenvolvida e a sabedoria adquirida através do despertar da intuição. Por esta razão o sábio diz que não existe força maior do que o Yoga no universo. Ghaṭa, o corpo físico – e todo complexo sutil que o acompanha – pode desenvolver todas as suas potencialidades através do Yoga, do denso ao sutil, atingindo então a auto-realização.

O conhecimento é o melhor amigo

Nāsti jñānātparo bandhuḥ significa que não existe melhor amigo do que o conhecimento neste mundo. Nas situações mais difíceis da vida, conhecimento é a única força que pode de verdade nos auxiliar. Existe uma história que ilustra essa verdade: dois amigos que passeavam por uma floresta encontraram um urso. Um deles fugiu correndo e subiu em uma árvore. O outro não sabia como subir na árvore. Repentinamente, lhe veio à mente que ursos não costumam incomodar cadáveres. Assim, ele rapidamente se jogou ao chão e fingiu-se de morto. O urso veio até ele, lhe cheirou por alguns minutos e lhe cutucou aqui e ali. Ele permaneceu completamente imóvel, como um cadáver, mantendo total controle sobre sua mente. Após algum tempo o urso estava confuso e pensou: «qual é o objetivo de matá-lo se ele já está morto?» Com este pensamento, ele foi embora, seguindo seu caminho.

Após algum tempo, o amigo desceu da árvore e perguntou: «o que o urso disse a você?» Ele respondeu: «o urso me disse para nunca confiar em amigos que nos deixam na mão na hora que mais precisamos». Nessa história o amigo não ajudou o outro e sim o conhecimento. É por isso que o conhecimento é tido como o melhor amigo.

Uma pessoa pode não ajudar a outra em momentos de dificuldade, mas o conhecimento sempre ajudará. O conhecimento dissipa a ignorância. Todas as dificuldades que existem na vida ocorrem por conta da ignorância. O Yoga não acredita que uma pessoa é subjulgada pelas dificuldades na vida devido ao destino. O Yoga diz que se alguém tem puruṣārtha «propósito», «capacidade», pode permanecer feliz em todas as condições.

O ego é o inimigo

Nāhankārātparo ripuḥ significa que o ego é a causa raiz de todas as falhas, imperfeições e insuficiências. Todos gostam de pensar que são abençoados com as melhores qualidades. Essa auto-imagem é a melhor e a que mais sabe das coisas, por isso é difícil se desfazer dela. Pensamos que nosso trabalho é o melhor, o mais correto; que nossos pensamentos são os certos e que nossos princípios são os mais adequados. Não se prostar a ninguém é a tendência mais comum do ego, por isso ele é o pior dos inimigos. É um obstáculo nas relações e suprime o processo de aprendizado, pois a pessoa não se ajusta as mudanças e as circunstâncias. O véu do ego na frente de nossos olhos impede a mente de se desenvolver. Por outro lado, o Yoga e o conhecimento são tidos como uma força e um amigo na vida.

Desse ponto em diante a educação no processo do Yoga começa: como utilizar o poder do Yoga através da prática e fazer do conhecimento nosso amigo, estando livres da ignorância e portanto da ilusão, mantendo o inimigo na forma do ego a distância.

A visão de Gheraṇḍa

O quarto śloka é o primeiro ensinamento de Gheraṇḍa. As falhas na vida do indivíduo podem ser descobertas pela contemplação e meditação nestes quatro temas. Neste mundo, seja nos tempos antigos ou na presente era, conhecimento, ilusão, ego e Yoga (neste sentido, esforço para conquistar algo), são agentes primordiais no envolvimento com o mundo e seus acontecimentos.

O significado de ilusão, neste contexto, é «conhecimento equivocado» ou ignorância, falta de conhecimento espiritual, algo que agrilhoa todos nós. Na prática, māyā ou ilusão toma a forma de mente estreita e o ego, considerando os próprios pensamentos e princípios como sendo os melhores, produz a atração pelos prazeres sensuais do saṃsāra, o mundo fenomênico. Essa tendência se torna um grande inimigo na jornada do espírito. Examinando o ego de maneira acurada, podemos percebê-lo como mente estreita. Isso é fácil de averiguar, pois quando a consciência de um indivíduo está expandida, existe uma compreensão mais profunda da natureza egóica. Isso torna os efeitos do ego controláveis.

Conhecimento e Yoga são vistos aqui como um amigo e uma força, uma energia. Existem muitas formas de conhecimento. Por exemplo, os homens de outrora que viviam nas florestas e montanhas desenvolveram lanças e arcos. Essa é uma manifestação externa do conhecimento através do qual eles experimentavam um sentido interno de segurança, estando hábeis a enfrentar as dificuldades da vida.

O Yoga é visto aqui como uma energia, uma força. Outro nome para Yoga é puruṣārtha, esforço. Quando empreendemos um esforço, ele se torna um sādhanā, uma prática de Yoga. Yoga significa união. Puruṣārtha e sādhanā são forças de união. Puruṣārtha e sādhanā são śaktis, energias ou poderes latentes em nós.




[1] घटस्थयोगं योगेश तत्त्वज्ञानस्यकारनम्. G.S. I:2.
[2] मास्ति मायासमः पाशो नास्ति योगात्परम् बलम्।
नास्ति ज्ञानात्परो बन्धुर्नाहन्कारात्परो रिपुः. G.S. I:4.

0 comentários:

Postar um comentário