segunda-feira, 26 de maio de 2014




Fernando Liguori


Texto para publicação na internet baseado nos estudos sobre as técnicas de Yoga ensinadas por Mahāṛṣi Gheraṇḍa ao seu aluno, o rei Caṇḍakāpāli na Gheraṇḍa-saṃhitā.


Algum tempo atrás, eu fiz declarações acerca de se tornar um «professor de yoga» em mini-cursos de até seis meses. Na época, eu chamei estes cursos de «supletivos de yoga». É possível que uma pessoa que nunca entrou em contato com a cultura do Yoga possa, em seis meses, se tornar professora? Não! Ser professor de Yoga não exige somente a vontade de transmitir essa cultura. Antes, é exigido talento. Essa afirmação pode parecer dura, mas existem dois tipos de professores de Yoga: aqueles cuja natureza é nadar em poça d’água, são «rasos» e por conta disso, medíocres na transmissão da cultura do Yoga. Mas existem aqueles cuja natureza é nadar em mares e oceanos. São pessoas profundas, de mente refinada e por conta disso, proficientes na transmissão do Yoga.

De qualquer maneira, somente um yogī pode transmitir o Yoga. Entretanto, tornar-se um yogī não é algo que acontece da noite para o dia. Existem etapas e os ensinamentos de Mahāṛṣi Gheraṇḍa ilustram essa ideia. No terceiro śloka da Gheraṇḍa-saṃhitā ele diz: sādhu sādhu mahābāho yanṃān tvam paripṛcchasi, kathayāmi ca te vasta sāvadhāno’vadhāraya,[1] i.e. «Ó mahābāho, muito bem feito. Já que me perguntaste, querido filho, escuta atentamente o que vou dizer, para que adquira este conhecimento.» Aceitando o rei como seu discípulo, o sábio ignorava uma velha crença. Naquela idade, não era normal que uma pessoa do mundo, um chefe de família, buscasse aprender Yoga, o conhecimento de si mesmo e a auto realização. Este caminho era apenas para santos e saṃnyāsins. Aqui está claro que o rei veio em busca de conhecimento espiritual. Gheraṇḍa o chamou de mahābāho, uma palavra de muitos significados como «aquele que possui o poder nos braços», «aquele que possui braços longos», «aquele que protege e cuida das pessoas» ou «alma valente». Aqui, «rei valioso». Além de ser um rei e chefe de família, Caṇḍkāpāli também era um mumukṣu «aquele que procura a liberação». Ele possuía o desejo de atingir mokṣa, a liberação. Foi por este motivo que procurou o conhecimento do Yoga.

Quem é adequado para ensinar yoga?

Este verso não diz apenas quem é adequado a prática do Yoga, mas também quem é adequado a ensinar Yoga. Sādhu sādhu mahābāho. Gheraṇḍa está dizendo: «É muito bom que você esteja adotando este caminho. Você exprimiu seu objetivo e o conhecimento do Yoga é transmitido àquele que ardentemente deseja conhecer a si mesmo. Apenas uma pessoa que tem puruṣārtha e sādhanā como ferramentas para conhecer a si mesma é chamada de yogī

Genericamente, a palavra «yoga» é traduzida como união. A ideia por trás dessa definição é a união entre a consciência individual e a consciência universal, cósmica. Neste processo, primeiro o buscador se torna um sādhaka, depois um yogī. Existem quatro estágios no caminho dessa união: 1. jignasu «buscador»; 2. sādhaka «devoto/iniciado»; 3. yogī «aquele que experimentou a verdade e conquistou o conhecimento, cujo principal objetivo é atingir o conhecimento e o entendimento da verdade interna, seja ele um chefe de família, santo ou saṃnyāsin»; 4. Jīva-mukta «liberto em vida». A curiosidade surge na mente de todas as pessoas. Todo ser humano em dado momento de sua passagem por esse mundo divaga sobre o objetivo e propósito da vida, mas devido a sua não inclinação ou até mesmo aversão, essas indagações são rapidamente esquecidas. Da mesma maneira, algumas pessoas se aproximam do Yoga pelos motivos errados e antes que essa tendência seja corrigida, inúmeros «profissionais» são lançados no «mercado de trabalho» através de cursos de seis, oito ou doze meses. Mas Yoga não é profissão! Aquele que tem o Yoga como profissão não se enquadra nessas quatro classes mencionadas acima. Nessa linha de pensamento, quem está qualificado a ensinar Yoga é o sādhaka ou o yogī, pois eles mantêm em mente o real objetivo de sua busca enquanto executam seu sādhanā.

O sādhanā pode ser executado de muitas maneiras distintas. O Yoga e o Tantra são as duas únicas culturas cujas práticas e técnicas são ensinadas a fim de se conhecer e gerenciar cada estágio da vida. As práticas incluem o corpo, a mente e um conhecimento superior, mas antigamente eram ensinadas apenas a um grupo de pessoas. Na vida do chefe de família, o sādhanā estava limitado a prática do dharma ou dharmacaran. Esse tipo de crença ainda existe até hoje, mesmo na Índia. Se você pergunta a uma pessoa comum da Índia qual é o seu sādhanā, ela irá responder que todos os dias pela manha ascende três varetas de incenso na frente de sua deidade particular, ascende também uma lamparina e recita dois ou três mantras.

De acordo com o Yoga, contudo, esse é só um aspecto do sādhanā. Esse entendimento mais amplo do sādhanā é encontrado em escrituras como Mahābhārata, Rāmāyāna, Yoga Vāsiṣṭha, Vedas e outros trabalhos literários. Existe uma expressão em sânscrito que é muito mal compreendida e que é valiosa nesse momento: śarīrāmadhyam khalu dharmasādhanam, i.e. «através do corpo o homem pode realizar seus deveres, obrigações e dharmas.» As pessoas têm a tendência de interpretar isso como um esforço que se faz através do corpo para atingir Deus. Mas como isso é feito? Através do Yoga. Quando um devoto ou seguidor do dharma adota o Yoga, ele se torna um yogī.

O objetivo prático do yogī

O primeiro objetivo prático do yogī é compreender sua própria natureza, o que inclui sua personalidade, corpo, mente, emoções e intelecto. O segundo objetivo prático é o despertar de suas faculdades latentes. Se toda a parte inconsciente da mente fosse usada, o intelecto não teria limites e o homem se tornaria um super-homem. Tanto o Yoga quanto o Tantra sempre declararam que as energias internas inconscientes devem ser despertadas.

O terceiro objetivo prático do yogī é servir a sociedade. Após conquistar alguma habilidade através do Yoga – e não antes disso – deve-se contribuir para o desenvolvimento e manutenção da sociedade. Nesse período, o sādhanā continua, sem interrupção. Dessa maneira, através da combinação equilibrada entre karma e conhecimento, o quarto estado é conquistado, mokṣa ou liberação.

Aprendendo o ABC do yoga

Umas das características da Gheraṇḍa-saṃhitā, é a marcante regularidade de comparações, analogias e metáforas que Gheraṇḍa utiliza para ensinar seu discípulo. O quinto śloka é um exemplo. Ele diz: abhyāsātkādivarnānām yathā śāstraṇī bodhayet, tathā yogaṃ samāsādhya tattvajñānam ca labhyate,[2] i.e. «Assim como começamos pelo aprendizado do alfabeto para compreendermos os śāstras, similarmente, pela proficiência no Yoga a auto-realização é conquistada.» Em outras palavras, Gheraṇḍa está dizendo que é possível a realização de mokṣa, a liberação, através da prática do Yoga. Essa prática não se aprende em seis ou oito meses em supletivos de Yoga. Na verdade, curso nenhum de formação, sob essa perspectiva, está qualificado a ensinar Yoga. O Yoga se aprende com o guru, passo a passo. Só o guru tem a capacidade de olhar nos seus olhos e ver o seu karma. O guru apenas, conhecendo o seu karma, está qualificado a lhe ensinar Yoga. O guru não vai lhe ensinar modismos como «yoga-dance», «acro-yoga» e outras picaretagens do gênero. O guru vai lhe ensinar Yoga, vai lhe ensinar o ABC do Yoga.

Uma criança que não aprendeu o alfabeto não pode ler ou escrever corretamente. A criança que aprendeu o alfabeto, por outro lado, pode ler e escrever com proficiência ao longo do tempo, praticando constantemente. Com este conhecimento em mão, a criança poderá, no futuro, compreender o que está nas escrituras. O mesmo ocorre com o Yoga. Primeiro deve-se sentar na escola e como aluno aprender o ABC do Yoga. Somente depois pode o aluno ocupar o lugar de professor. Esse aprendizado é possível em apenas seis ou oito meses? Levam-se anos para que uma pessoa saia da escola e isso é necessário para que ela seja educada corretamente. Portanto, aprende-se Yoga na escola do guru, escutando seus ensinamentos. Como o guru conhece o seu karma, ele irá lhe ensinar um método adequado e ajustado apenas a você, que esteja em consonância com a sua verdadeira natureza, profundamente conhecida pelo guru. Assim, acreditar que um curso de seis ou oito meses irá capacitá-lo a ensinar Yoga é uma atitude equivocada. É necessário anos ao lado do guru para que o Yoga seja absorvido na vida. Sem o «tapa do guru» o verdadeiro Yoga não se inicia em sua vida.

É necessário um processo gradual. Não é nada prático esperar que uma criança no ensino fundamental lhe entregue uma dissertação de doutorado. Da mesma maneira, problemas podem surgir quando uma pessoa que não aprendeu direito o ABC do Yoga tenta, por exemplo, despertar a kuṇḍalinī. Sem a fundação do conhecimento não é possível caminhar com segurança. Forçar-se a si mesmo nessa direção sempre levará a um resultado negativo. Neste caso, portanto, primeiro é fundamental adquirir um conhecimento de sua estrutura física e mental, bem como suas interações psicológicas antes de embarcar nessa jornada que é a transmissão do Yoga.

O progresso sequencial

O sábio Gheraṇḍa está dizendo que o Yoga deve ser praticado de maneira sequencial. Com uma sequência prática, a auto-realização será gradualmente conquistada. É preciso uma familiarização com toda estrutura física, mental, emocional, intelectual, psicológica e suas interações internas. Uma vez que essa fundação seja bem construída, entendimento profundo e experiência são necessários para que a auto-realização ocorra. Se uma pessoa que não sabe nadar pula na água após ver um nadador profissional fazer seu trabalho, irá se afogar. Tal ação indica ignorância. Gheraṇḍa provê um método que dissipa a falta de discriminação. Ele aconselha seu discípulo a progredir gradualmente, passo a passo desde o início para que ele aprenda e tenha entendimento correto.

Uma pessoa que se propõe a ensinar o Yoga, portanto, deve começar do início, passo a passo, com profunda consciência de suas limitações e capacidades. Esse é o primeiro passo para se tornar um buscador e devoto antes de se tornar um yogī. A busca por se tornar um professor de Yoga não deve vir do desejo ou da curiosidade. Antes, deve vir do compromisso com a auto-realização. Somente um buscador sincero, que deseja ardentemente conhecer a si mesmo e se proponha a lapidar sua estrutura densa está qualificado a transmitir a tradição. Do contrário, irá se transformar em um «profissional» e Yoga não é profissão. Existem aos milhões «profissionais do yoga», conhecidos pelo nome genérico de «marmiteiros» ou «yogīs de beira de estrada».

Cuidado, seu professor de Yoga pode ser um professor de ginástica!





[1] साधु साधु महाबाहो यन्ंआन् त्वम् परिपृच्छसि।
कथयामि च ते वस्त सावधानोवधारय॥, G.S. I:3.
[2] अभ्यासात्कादिवर्नानाम् यथा शास्त्रणी बोधयेत्।
तथा योगं समासाध्य तत्त्वज्ञानम् च लभ्यते॥, G.S., I:5.

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