domingo, 2 de fevereiro de 2014



Swami Satyananda Saraswati

Extratos do livro Kundalini Tantra, Yoga Publications Trust.

Todo mundo deve saber algo a respeito da kuṇḍalinī, uma vez que ela representa a vinda da consciência da humanidade. Kuṇḍalinī é o nome de uma força em potencial adormecida no organismo humano e que está situada na raiz da coluna espinhal. No corpo masculino ela está no períneo, entre o órgão urinário e excretor. No corpo feminino ela está localizada no colo do útero. O centro é conhecido como mūlādhāra-cakra e é realmente uma estrutura física. É uma pequena glândula que você pode até mesmo pressionar. Contudo, a kuṇḍalinī é uma energia latente, e mesmo que você a pressione, ela não explode como uma bomba.

Para despertar a kuṇḍalinī você deve se preparar através das técnicas de Yoga. Você deve praticar āsanas, prāṇāyāmas, kriyā-yoga e meditação. Então, quando você for capaz de forçar seu prāṇa para dentro da morada da kuṇḍalinī, a energia desperta para cima, percorrendo a suṣumṇā-nāḍī, o canal nervoso central, para o cérebro. Conforme a kuṇḍalinī ascende, ela passa através de cada um dos cakras que estão interconectados com as diferentes regiões silenciosas do cérebro. Com o despertar da kuṇḍalinī, ocorre uma explosão no cérebro e as áreas dormentes ou latentes começam a florescer. Portanto, a kuṇḍalinī pode ser equacionada com o despertar das áreas silenciosas do cérebro.

Embora seja dito que a kuṇḍalinī reside no mūlādhāra-cakra, estamos todos em diferentes estágios de evolução e alguns de nós podemos ter atingido o swādhisṭhāna, o maṇipūra ou o anāhata-cakra. Se for desta maneira, seja lá qual for o sādhanā, você agora pode começar um despertar no anāhata ou mesmo em outro cakra. Contudo, o despertar da kuṇḍalinī no mūlādhāra-cakra é algo bem distinto do despertar no sahasrāra-cakra, o centro mais elevado do cérebro. Uma vez que o lótus de mil pétalas, o sahasrāra, floresce, uma nova consciência surge. Nossa consciência atual não é independente, assim como a mente depende das informações fornecidas pelos sentidos. Se você não tiver olhos, não poderá ver; se é surdo, nunca vai ouvir. Contudo, quando a superconsciência emerge, a experiência torna-se completamente independente e o conhecimento também se torna completamente independente.

Como a kuṇḍalinī foi descoberta

Desde o início da criação, o homem testemunhou muitos acontecimentos transcendentais. Às vezes ele era capaz de ler o pensamento dos outros; testemunhou algumas previsões verdadeiras da vida de outras pessoas, ou pode até ter visto seus próprios sonhos manifestando-se como realidades. Ele ponderou sobre o fato de que algumas pessoas podiam escrever poemas inspirados ou compor lindas músicas, enquanto outros não conseguiam; que uma pessoa podia lutar num campo de batalhas por dias seguidos e outra pessoa não podia sequer levantar-se de sua cama. Então, ele quis descobrir porque todos pareciam ser diferentes.

No curso de suas investigações, o homem passou a entender que dentro de cada indivíduo existe uma forma especial de energia. Ele viu que em algumas pessoas ela estava adormecida e em outras ela estava evoluindo e, em uma minoria, ela estava completamente desperta. Originalmente, o homem chamou esta energia de deuses, deusas, anjos ou divindades. Em seguida, ele descobriu o prāṇa e a chamou de prāṇa-śakti. No Tantra eles a chamam de kuṇḍalinī.



Os vários nomes da kuṇḍalinī

Em sânscrito, kuṇḍalinī significa espiral, e assim a kuṇḍalinī tem sido descrita como aquela que esta enrolada. Esta é a crença tradicional, mas a kuṇḍalinī tem sido compreendida incorretamente. A palavra kuṇḍalinī atualmente vem da palavra kuṇḍa, significando um lugar mais profundo, poço ou cavidade. O fogo usado na cerimônia de iniciação é aceso em um buraco chamado kuṇḍa. Da mesma forma, o local onde um corpo é queimado é chamado kuṇḍa. Se você cavar uma vala ou um buraco, isso se chama kuṇḍa. Kuṇḍa refere-se à cavidade côncava no qual o cérebro, semelhante a uma serpente enrolada e dormindo se aconchega. (Se você tiver a oportunidade de examinar uma disecção do cérebro humano, notará que ele é da forma de uma espiral ou serpente enroscada sobre si mesma.) Este é o verdadeiro significado da kuṇḍalinī. A palavra kuṇḍalinī refere-se à śakti, ou o poder quando ela está em seu estado potencial, adormecida, mas quando ela está se manifestando você pode chamá-la devī, Kālī, Durgā, Saraswatī, Lakṣmī ou qualquer outro nome, de acordo com a manifestação que ela está exibindo diante de você.

Na tradição cristã, os termos o caminho dos iniciados e estrada para o paraíso, usados na Bíblia, referem-se a ascensão da kuṇḍalinī através da suṣumṇā-nāḍī. A ascensão da kuṇḍalinī e, finalmente, a descida da graça espiritual, são simbolizados pela cruz. É por isso que os cristãos fazem o sinal da cruz na direção do ājñā, anāhata e viśuddhi-cakras, porque o ājñā é o centro onde a consciência ascendente é transcendida e o anāhata é onde a graça descendente se manifesta para o mundo.

Seja lá o que aconteça na vida espiritual, está relacionado ao despertar da kuṇḍalinī. E o objetivo de toda forma de vida espiritual, quer você a chame de samādhi, nirvāna, mokṣa, comunhão, união, kaivalya, liberação ou qualquer outro nome, é de fato o despertar da kuṇḍalinī.

Kuṇḍalinī, Kālī & Durgā

Quando kuṇḍalinī desperta e você não está preparado para lidar com sua manifestação ela e chamada Kālī. Quando você pode manuseá-la e está apto para usá-la para efeitos benéficos e você torna-se poderoso por conta disto, ela é chamada de Durgā.

Kālī é uma divindade feminina, nua, preta ou da cor de fumaça, usando uma mālā de 108 crânios humanos, representando as memórias dos diferentes nascimentos. A língua para fora de Kālī, de cor vermelha, significa o guṇa rajas, cujo movimento circular dá impetuosidade a todas as atividades criativas. Por este gesto, especificamente, ela está exortando os sādhakas a controlarem seu rajas. A espada do sacrifício e a cabeça decepada em uma de suas mãos esquerdas são os símbolos da dissolução. Trevas e morte não são, de modo algum, a mera ausência de luz e vida, ao contrário, são a sua origem. O sādhaka adora o poder cósmico na forma feminina, pois ela representa o aspecto cinético, o masculino sendo o estático, o qual é ativado somente através do poder dela.

Na mitologia hindu, o despertar de Kālī foi descrito em muitos detalhes. Quando Kālī se ergue vermelha de raiva, todos os deuses e demônios ficam aturdidos e todo mundo fica em silêncio. Eles não sabem o que ela vai fazer. Eles pedem ao Senhor Śiva para pacificá-la, mas Kālī joga-o ferozmente para abaixo e de pé sobre seu peito, com sua boca aberta, sedenta por carne e osso, ruge de fúria. Quando os devas realizam orações para pacificar Kālī, ela se torna calma e tranqüila.

Em seguida, há o surgimento de Durgā, o mais elevado, mais refinado e benigno símbolo do inconsciente. Durgā é uma deusa bela sentada sobre um tigre. Ela tem oito mãos representando os oito elementos do homem. Durgā usa uma mālā de cabeça de homens para simbolizar sua sabedoria e seu poder. Estas cabeças são geralmente cinqüenta e duas em número, representando as cinqüenta e duas letras do alfabeto sânscrito, as manifestações exteriores de śabda-brahma ou Brahma na forma de som. Durgā é a removedora de todas as más conseqüências da vida e é a doadora do poder e paz que são liberados a partir do mūlādhāra-cakra. De acordo com a filosofia do Yoga, Kālī, a primeira manifestação do inconsciente, é um poder terrível; ela domina completamente a alma individual, representada por sua posição sobre o Senhor Śiva. Às vezes acontece que, pela instabilidade mental, algumas pessoas entram em contato com seu corpo inconsciente e vêem elementos ferozes e pouco auspiciosos – fantasmas, monstros etc., quando Kālī, o poder inconsciente do homem, é desperto, ela eleva-se até encontrar a manifestação mais adiante, sendo Durgā, o superconsciente, a outorgadora da gloria e perfeição.

A representação simbólica da kuṇḍalinī

Nos textos tântricos, a kuṇḍalinī é concebida como poder ou energia primordial. Nos termos da psicologia moderna ela pode ser chamada de inconsciente no homem. Na mitologia hindu, a kuṇḍalinī é correspondente ao conceito de Kālī. Na filosofia do Śaivismo, o conceito de kuṇḍalinī é representado pelo śiva-liṅga, o pilar de pedra oval com uma serpente enrolada nele.

No entanto, mais comumente, a kuṇḍalinī é ilustrada como uma serpente adormecida, enrolada três vezes e meia. Claro, não há uma serpente residindo no mūlādhāra, sahasrāra ou qualquer outro cakra, mas ela sempre foi um símbolo para a consciência eficiente. Em todos os antigos cultos místicos do mundo você pode encontrar a serpente, e se tiver visto qualquer pintura ou imagem do Senhor Śiva, notará serpentes em volta de sua cintura, de seu pescoço e de seus braços. Kālī também está adornada com serpentes e o Senhor Viṣṇu repousa eternamente em uma enorme serpente enroscada. Este poder da serpente simboliza o inconsciente no homem.

Na Escandinávia, Europa, América Latina e países do Oriente Médio, e em muitas diferentes civilizações do mundo, o conceito do poder da serpente está representado em monumentos e em antigos artefatos. Isto significa que a kuṇḍalinī era conhecida por pessoas de todas as partes do mundo no passado. No entanto, podemos conceber a kuṇḍalinī de qualquer maneira, pois na verdade, o prāṇa não tem forma ou dimensão, ele é infinito.

Nas descrições tradicionais do despertar da kuṇḍalinī, é dito que ela reside no mūlādhāra na forma de uma serpente enroscada, e quando a serpente desperta e se desenrola, ela atira-se para cima através da suṣumṇā-nāḍī (a passagem psíquica no centro da medula espinhal), abrindo os outros cakras conforme ela passa por eles (veja Sir John Woodroffe, The Serpente Power). Brahmacarī Swami Vyāsdev, em seu livro Science of the Soul, descreve o despertar da kuṇḍalinī da seguinte maneira:

Os sādhakas têm visto a suṣumṇā sob a forma de uma haste ou coluna luminosa, uma serpente amarelo ouro, ou às vezes como uma serpente preta brilhante por volta de dez centímetros de comprimento com olhos da cor de sangue como carvão em brasas, a parte da frente da língua vibrando e brilhando como um relâmpago, subindo pela coluna vertebral.

O significado das três voltas e meia da serpente é como se segue: as três voltas representam os matras do oṃ, os quais se referem ao passado, presente e futuro; os três guṇas: tamas, rajas e sattva; os três estados de consciência: vigília, sono e sonho; e aos três tipos de experiência: experiência subjetiva, experiência sensual e ausência de experiência. A meia volta representa o estado de transcendência, onde não se está nem desperto, nem dormindo e nem sonhando. Assim, as três voltas e meia significam a experiência total do universo e a experiência de transcendência.

Quem pode despertar a kuṇḍalinī?

Existem muitas pessoas que têm despertado a kuṇḍalinī. Não só os santos e sadhus, mas poetas, pintores, guerreiros, escritores etc. Qualquer pessoa pode despertar a kuṇḍalinī. Com o despertar da kuṇḍalinī, não apenas as visões de Deus ocorrem, há o surgimento de uma inteligência criativa e o despertar de faculdades supramentais. Ao despertar a kuṇḍalinī, você pode tornar-se qualquer coisa na vida.

A energia da kuṇḍalinī é única, mas se expressa de maneiras diferentes através dos centros psíquicos ou cakras – primeiro em formas brutas instintivas e, em seguida, em formas progressivamente mais sutis. O refinamento da expressão desta energia em níveis mais elevados de vibração representa a ascensão da consciência humana para suas possibilidades mais elevadas.

A kuṇḍalinī é a energia criativa; ela é a energia da auto-expressão. Assim como na procriação uma nova vida é criada, da mesma forma, alguém como Einstein usa esta mesma energia em uma diferente, porém sutil, esfera para criar uma teoria como a da relatividade. Ela é a mesma energia que se manifesta quando alguém compõe ou toca uma música bonita. Ela é a mesma energia que se expressa em todas as partes da vida, seja construindo um negócio, cumprindo os deveres da família ou alcançando qualquer objetivo que se aspire. Estas são todas expressões da mesma energia criativa.

Todo mundo, quer seja um chefe de família ou um saṃnyāsin, deve lembrar-se que o despertar da kuṇḍalinī é a finalidade primordial da encarnação humana. Todos os prazeres da vida sensual que estamos desfrutando agora apenas se destinam a reforçar o despertar da kuṇḍalinī em meio às circunstancias adversas da vida.

Um processo de metarmofose

Com o despertar da kuṇḍalinī, uma transformação toma lugar na vida. Isso tem pouco a ver com uma vida moral, religiosa ou ética. Tem mais a ver com a qualidade das nossas experiências e percepções. Quando a kuṇḍalinī desperta, a mente muda e suas prioridades e apegos também mudam. Todos os seus karmas passam por um processe de integração. Isso é muito simples de compreender. Quando você era uma criança amava brinquedos, mas por que agora não os ama? Porque sua mente mudou e, conseqüentemente, seus apegos também mudaram. Assim, com o despertar da kuṇḍalinī uma metamorfose ocorre. Existe ainda a possibilidade de reestruturação de todo o corpo físico.

Quando a kuṇḍalinī desperta, o corpo físico realmente passa por muitas mudanças. Geralmente elas são positivas, mas se seu guru não for prudente, elas podem ser negativas também. Quando a śakti acorda, as células no corpo são completamente carregadas e um processo de rejuvenescimento também se inicia. As alterações de voz, o cheiro do corpo e as secreções hormonais também mudam. De fato, a transformação das células no corpo e no cérebro ocorrem em uma taxa muito maior do que o normal. Estas são apenas algumas observações. No entanto, os cientistas ainda estão dando seus primeiros passos neste campo.

Por que despertar a kuṇḍalinī?

Se você deseja praticar kuṇḍalinī-yoga, o mais importante é que tenha uma razão, um objetivo. Se você quer despertar a kuṇḍalinī pelos poderes psíquicos, então, por favor, vá em frente com seu próprio destino. Mas se você quer despertar a kuṇḍalinī a fim de desfrutar a comunhão entre Śiva e Śakti, a atual comunhão entre as duas maiores forças em você, se quer entrar em samādhi e experenciar o absoluto no cosmos, se quer compreender a verdade por trás das aparências, se o propósito de sua peregrinação é muito grande, então não há nada que possa se transformar em um obstáculo a sua jornada.

Por meio do despertar da kuṇḍalinī, você está contrabalançando com as leis da natureza e acelerando o ritmo de sua evolução física, mental e espiritual. Uma vez que a grande Śakti desperta, o homem não é mais um corpo físico grosso operando com uma mente fraca e um prāṇa de baixa voltagem. Em vez disso, cada célula de seu corpo é carregada com o prāṇa de alta voltagem da kuṇḍalinī. E quando o total despertar ocorre, o homem torna-se o mais novo deus, uma encarnação da divindade.


Tradução livre de Fernando Liguori

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