sábado, 1 de fevereiro de 2014



Por Fernando Liguori


A natureza primordial, prakṛti, não é uma substância homogenia, mas o solo da multiplicidade. Ela é como a cauda do pavão: quando se recolhe, desaparece na uniformidade, mas quando se abre, revela todas as cores do arco-íris. Prakṛti contém em si mesma todas as formas da criação que se manifestam através de três qualidades (guṇas) primárias: sattva, rajas e tamas.

Rajas é a força ativa, estimulante ou positiva que inicia a mudança, perturbando o velho equilíbrio. Tamas é a força passiva ou negativa que obstrui, a qual sustenta a atividade anterior. Sattva é a força neutra ou equilibradora, harmonizando o positivo e o negativo, que vigia e observa. Todas as três forças são necessárias nas atividades ordinárias, mas possuem suas implicações espirituais também.

Sattva é a qualidade da luz, do amor e da vida, a força espiritual superior que nos permite evoluir a consciência. Ela proporciona virtudes dhármicas como fé, honestidade, auto-controle, modéstia e veracidade. Rajas possui a qualidade crepuscular da paixão e agitação, a força vital intermediária cujo fator principal é a falta de estabilidade e consistência. Ela desencadeia as flutuações emocionais da atração e repulsão, medo e desejo, amor e ódio. Tamas é a qualidade da escuridão, falta de sentimento e morte, a força material inferior que nos arrasta para baixo em direção a ignorância e ao apego. Ela causa o embotamento, a inércia, indolência, apego emocional e estagnação.

A prakṛti imanifesta possui estas três qualidades em equilíbrio, no qual rajas e tamas se integram em sattva. Na manifestação, estas três qualidades assumem formas distintas: sattva dá nascimento à mente, rajas gera a vida de força e tamas cria a substância através da qual o corpo físico se manifesta.

Leis dos guṇas

Existem duas leis básicas acerca dos guṇas que são vitais para o entendimento de suas funções. A primeira lei dos guṇas é a lei da alternação. Os três guṇas estão sempre em interação dinâmica. Todas as três forças permanecem se entrelaçando, afetando uma a outra de várias maneiras. Rajas e tamas existem no campo de sattva; tamas e sattva são encontrados no campo de rajas e sattva e rajas se movimentam no campo de tamas. A essência dos três guṇas é a interação que existe em suas manifestações.

A segunda lei dos guṇas é a lei da continuidade. Os guṇas têm a tendência de manter suas naturezas particulares por certo período de tempo uma vez que são predominantes. Substâncias se estabilizam no nível de um dos três guṇas. Enquanto é, inicialmente, difícil para tamas se transformar em rajas, ou para rajas se transformar em sattva, uma vez que conseguem, continuam na mesma qualidade.

Nós podemos ver estas duas leis a qualquer momento. A noite como escuridão se relaciona com tamas. O nascer e o pôr-do-sol como períodos de transição se relacionam com rajas e o dia como luz se relaciona com sattva. Estas fases estão sempre se alternando. A noite se transforma em dia, o dia se transforma em noite que se transforma em dia novamente. Esta é a lei da alteração.

Contudo, uma vez que uma fase particular seja criada, ela persiste com poucas alterações por um período de tempo. A noite continua por um período até que se transforma em dia. Este, por sua vez, também se mantém estável por um período de tempo até que se transforme em noite. Mas durante estes respectivos períodos, certas condições persistem. Por exemplo, somos mais ativos durante o dia e mais passivos durante a noite.

A este respeito, tamas e sattva têm mais continuidade do que rajas. Rajas, que é inerentemente instável, não pode manter sua condição por um longo período de tempo e então logo retrocede ao estado de tamas ou avança ao estado de sattva. Rajas tem uma característica transitória e governa a interação entre os guṇas. Todavia, é possível permanecer no nível de rajas como uma qualidade dominante por um longo período na vida. Essa é a condição da sociedade moderna, predominantemente rajásica, ativa e instável. Mas para que rajas continue nesta condição, deve haver ação e estímulo contínuo para sustentá-lo.

Como os guṇas são condições relativas, devemos nos lembrar que o que é sattva em um nível, pode se transformar em rajas ou tamas em outro nível relativamente diferente. Tudo o que faz a consciência evoluir é sattva. Tudo o que nos leva para baixo é tamas. Isso significa que quanto mais avançamos no caminho espiritual, tudo o que nos ajudou a crescer e cuja natureza é sattvíca, deve ser descartado como algo tamásico na medida em que entramos em um novo nível de consciência.

O cultivo de sattva

O Yoga e a Āyurveda enfatizam o desenvolvimento de sattva. No Yoga, sattva é a qualidade superior que permite o crescimento espiritual. Na Āyurveda, sattva é o estado de equilíbrio que permite a auto-cura.

As práticas do Yoga têm dois estágios: o desenvolvimento de sattva e a transcendência de sattva. O desenvolvimento de sattva é a purificação do corpo e da mente. A transcendência de sattva é ir além do corpo e mente em direção ao Ser Interior, além de qualquer manifestação. Se alguém não consegue desenvolver sattva, é impossível transcendê-lo. Essa é uma regra importante que não pode ser esquecida. Se não possuímos sattva ou pureza na quantidade apropriada em nosso corpo e mente, em nossas emoções, seria prematuro buscar uma iluminação superior. O desenvolvimento de sattva ocorre através de uma dieta correta, purificação física, controle dos sentidos, controle da mente, mantra e devoção. A transcendência de sattva ocorre através das práticas meditativas mais avançadas.

Sattva também é a chave para cura ayurvédica. A Āyurveda afirma que quando o complexo corpo-mente é sattívico, torna-se difícil que padeça de doenças, estando capacitado a permanecer em um estado de equilíbrio. A doença, particularmente de natureza crônica, é essencialmente um estado tamásico. Tamas é responsável pelo acúmulo de toxinas e material residual em um nível físico bem como pensamentos e emoções negativas em um nível psicológico. A saúde é um estado sattvíco de equilíbrio e adaptação que evita qualquer tipo de excesso no organismo. Rajas é o movimento existente tanto da saúde a doença quanto da doença a saúde, dependendo da direção de seu desenvolvimento. Doenças agudas estão sob o domínio de rajas, que associa-se a dor.

Contudo, nós não podemos nos esquecer dos outros níveis de manifestação dos guṇas, quando eles aparecem de forma mesclada na evolução e expressão da personalidade.1 Existe uma quantidade elevada de rajas e tamas em sattva e uma baixa quantidade de sattva em rajas e tamas. Similarmente, existe o aspecto rajásico de tamas e o aspecto tamásico de rajas. O que se segue é uma breve descrição destes aspectos:

1.    Rajas-sattva: A força ativa ou transformadora de sattva. O poder da aspiração espiritual que nos impulsiona para cima, sempre buscando crescimento e desenvolvimento interior. É a energia da cura, da integração e da totalidade espiritual.
2.    Tamas-sattva: A força destrutiva de sattva que elimina a negatividade. É a estabilidade inerente de sattva, sua capacidade de suportar os intempéries da vida e transcender seus obstáculos. É a capacidade do estado de equilíbrio de sustentar a si mesmo e de se proteger contra a doença e o desequilíbrio.
3.    Sattva-rajas: É o tipo religioso e espiritual das pessoas rajásicas essencialmente idealistas. Aqui encontramos traços da agressão rajásica, expansão externa e busca pelo poder. Religiões baseadas no militarismo, exclusivismo e intolerância refletem essa qualidade.
4.    Tamas-rajas: A inércia dos tipos rajásicos, sua resistência a qualquer força superior ou elevada, mantendo-se apegado ao seu poder pessoal sem a menor consideração pelas conseqüências de seus impulsos, seja em relação a si mesmo ou a outras pessoas.
5.    Sattva-tamas: A religião, espiritualidade ou idealismo das pessoas tamásicas. Aqui encontramos traços da destruição tamásica, escuridão e desilusão. É o nível dos cultos sombrios e das supertições.
6.    Rajas-tamas: A agressão e violência das pessoas ignorantes e insípidas. É talvez a qualidade mais destrutiva dos guṇas. Pessoas tamásicas pisam nas outras e, destituídas de sensibilidade, se deleitam em prejudicar e destruir. Perversões sexuais profundas se manifestam neste nível.

A força rajásica superior

A força rajásica superior ou rajas-sattva é talvez a força-chave tanto para espiritualidade quanto para cura. A força rajásica inferior é a força rajásica que está sob o controle de tamas, como o crepúsculo que lentamente se transforma em noite ou o outono que se transforma em inverno. A força rajásica superior é a força rajásica que está sob o controle de sattva, como o alvorecer que se transforma em dia ou a primavera que se transforma em verão. No comportamento humano, rajas inferior é a atividade auto-centrada que leva a exaustão ou sofrimento (tamas). Rajas superior é a prática espiritual que leva a paz (sattva).

Para que o crescimento espiritual ocorra, essa força rajásica superior é necessária. Ela é a verdadeira śakti ou energia transformadora por trás do processo de transformação espiritual. Através dela o buscador se transforma em um guerreiro espiritual capaz de executar práticas espirituais com grande energia e vigor. O Yoga não apenas desenvolve sattva, mas essa força rajásica superior a fim de que sattva possa se estabelecer no organismo. Similarmente, a Āyurveda utiliza métodos fortes de cura como ervas poderosas e o tratamento através do pañca-karma para restaurar a saúde. Para que o crescimento espiritual e a cura possam ocorrer, a força rajásica superior ou energia transformadora deve estar presente, crucialmente, na busca pela auto-cura e auto-realização. A força superior de rajas (rajas-sattva) aciona o fogo da kuṇḍalinī-śakti para desobstruir o corpo sutil.2 A kuṇḍalinī sistematicamente integra tudo em um estado puro de sattva.

Tamas-sattva, o poder de resistência de sattva, muitas vezes é de grande auxílio. Na vida espiritual eles nos ajuda a resistir contra qualquer obstáculo que tente nos tirar do caminho. No processo de cura, ele sustenta as funções imunológicas do corpo e da mente.

A constituição mental de acordo com os três guṇas

A Āyurveda e o Yoga usam os três guṇas para determinar a natureza mental e espiritual do indivíduo. Geralmente, como afirmamos anteriormente, apenas um guṇa predomina em nossa constituição. Mas todos nós possuímos momentos espirituais ou sattvícos, períodos perturbantes ou rajásicos e às vezes momentos letárgicos ou tamásicos que podem ser curtos ou longos, dependendo de nossa natureza. Também podemos passar por fases sattvícas, rajásicas e tamásicas na vida que duram meses ou anos.

Os guṇas demonstram nosso estado mental e espiritual para que possamos medir nossa propensão em relação aos problemas psicológicos. O teste que se segue demonstra essas qualidades e como elas atuam em nossa vida e comportamento. As respostas a esquerda indicam sattva, no meio rajas e a direita tamas. Preencha a tabela com cuidado e honestidade. Depois de responder o questionário para si mesmo, peça a alguém que o conheça bem, como seu marido ou esposa ou até mesmo um amigo próximo para respondê-lo para você. Perceba a diferença entre como você vê a si mesmo e como os outros o vêem.

Para maioria de nós, nossas respostas geralmente cairão no meio (a área de rajas), que é o principal estado espiritual de nossa cultura ativa e extrovertida dos dias de hoje. Nós temos vários problemas psicológicos, mas geralmente conseguimos lidar com eles. Uma natureza sattvíca demonstra uma disposição espiritual com poucos problemas psicológicos. Uma natureza altamente sattvíca é difícil em nossos tempos e demonstra as qualidades de um santo ou sábio. Pessoas tamásicas possuem perigosos e sérios problemas psicológicos, mas seriam incapazes de responder esta tabela ou fazer um curso como este. As áreas em nós que podemos melhorar de tamas para rajas ou de rajas para sattva irão promover paz mental e crescimento espiritual. Todos nós podemos realizar mudanças em nós mesmos.

Quadro de constituição da mente


Sattva
Rajas
Tamas
Dieta
Vegetariana
Um pouco de carne
Regime à base de carne
Drogas, álcool e estimulantes

Nunca

De vez em quando

Sempre
Impressões sensoriais
Calmas, puras
Misturadas
Perturbadas
Necessidade de sono
Pouca
Moderada
Muita
Atividade sexual
Pouca
Moderada
Muita
Controle dos sentidos
Bom
Moderado
Fraco
Fala
Calma e tranqüila
Agitada
Tediosa
Limpeza
Muita
Moderada
Pouca
Trabalho
Altruísta
Para objetivos pessoais
Preguiça de trabalhar
Raiva
Raramente
Às vezes
Freqüentemente
Medo
Raramente
Às vezes
Freqüentemente
Desejo
Pouco
Considerável
Muito
Orgulho
Pessoa modesta
Pessoa egocêntrica
Vão
Depressão
Nunca
Às vezes
Freqüentemente
Comportamento violento

Nunca

Às Vezes

Freqüentemente
Apego ao dinheiro
Pouco
Considerável
Muito
Alegria
Comumente
Parcialmente
Nunca

Capacidade de perdoar

Sem dificuldade

Tem dificuldade
Longos períodos de rancor
Concentração
Boa
Moderada
Pouca
Memória
Boa
Moderada
Pouca
Força de vontade
Intensa
Variável
Pouca

Sinceridade

Constantemente
Na maior parte das vezes

Raramente

Honestidade

Constantemente
Na maior parte das vezes
Raramente
Paz de espírito
Constantemente
Parcialmente
Raramente
Criatividade
Muita
Moderada
Pouca
Estudos de caráter espiritual

Diariamente

Às vezes

Nunca
Mantra e oração
Diariamente
Às vezes
Nunca
Meditação
Diariamente
Às vezes
Nunca
Serviço
Muitos
Consideráveis
Nenhuns
TOTAL
Sattva_______
Rajas_______
Tamas_______



Texto retirado da apostila do Curso de Aprofundamento em Yoga & Āyurveda ministrado pelo Instituto Kaula.

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