sábado, 1 de fevereiro de 2014



Por Fernando Liguori


Para praticar Yoga em concordância com sua natureza, você deve ser capaz de determinar quem verdadeiramente é. No presente capítulo* vamos examinar os tipos constitutivos segundo o Yoga e a Āyurveda para que você consiga fazer isso.

Existem dois níveis de tipologia yogī. O primeiro e mais importante a partir de uma perspectiva espiritual é o nível dos três guṇas (sattva, rajas e tamas). O segundo e mais importante nos termos da saúde, é o nível dos três doṣas (vāta, pitta e kapha). Os guṇas apresentam um modelo mental-espiritual que nos auxilia a compreender nossas capacidades volitivas superiores e sua aplicação nas práticas yogīs mais avançadas. Os doṣas refletem o modelo psicofísico que nos ajuda a equilibrar as condições do complexo corpo-mente. Ambos os modelos são essenciais para uma estimativa apropriada de nossa real natureza e capacidades. Ambos provêm os fundamentos para prática yogī que reflete tanto a dinâmica particular da tipologia mente-corpo quanto o nível de desenvolvimento espiritual de cada praticante.

Tipos mentais de acordo com os guṇas

O Yoga e a Āyurveda definem a psicologia humana de acordo com três grandes qualidades da Natureza Primordial (prakṛti): os guṇas sattva (equilíbrio), rajas (agressão) e tamas (inércia). A natureza individual da mente é sattvíca, quer dizer, possui claridade, paz e harmonia. Contudo, sob a influência que vem do exterior através dos sentidos, a mente torna-se perturbada (rajas), perdendo seu foco interior, o que leva a uma busca frívola pela felicidade através dos sentidos. Essa perturbação muitas vezes resulta em uma longa inércia ou resistência (tamas), que é o apego ao mundo exterior dos sentidos e a cegueira para o mundo interior da consciência.

Nossa condição mental ordinária é a combinação de nossos estados de clareza (sattva), agitação (rajas) e embotamento (tamas). O Yoga se preocupa em trazer a claridade original (sattva) da mente para que ela possa ser o veículo da consciência pura. É por isso que o Yoga Clássico enfatiza o desenvolvimento de sattva. Para desenvolver a consciência interior é necessário aumentar o caudal de sattva no organismo.

No processo da doença, podemos ver o estado de tamas como a condição negativa da doença que queremos corrigir – o estado de inércia ou atitude incorreta que cria e sustenta os problemas na saúde. Rajas é a atividade necessária para se corrigir o problema – as várias terapias e mudanças que precisamos empregar para interromper o padrão da doença. Sattva é o novo estado de harmonia que procuramos criar que está livre de doenças – o estado de equilíbrio ou liberdade da doença.

Tipos mentais do Yoga & Āyurveda

·         Tipos sattvícos são pessoas pacíficas, calmas e de mente centrada. Possuem bons pensamentos e boas intenções. Espontaneamente executam boas ações. Têm consideração, são compassivas e abnegadas, colocando as necessidades dos outros acima delas mesmas. Emocionalmente, possuem muito amor, fé, devoção e contentamento.
·         Tipos rajásicos são pessoas de mente ativa e agitada, saltando de uma coisa para outra enquanto perseguem seus desejos. Eles têm muito entusiasmo, ambição e asserção, mas pouca paz ou calma. Pro-

movem seus próprios interesses, protegem aqueles que os servem e são hostis em relação aqueles que se opõem as suas idéias. Emocionalmente, são coléricos e não gostam de ser obstruídos naquilo que fazem.

·         Tipos tamásicos sofrem de embotamento mental, inércia e letargia. Têm pouca motivação em conquistar objetivos materiais ou espirituais. Emocionalmente, possuem muitos bloqueios que os incapacitam de se expressar harmoniosamente, o que os leva a violência e ilusão. Suas vidas geralmente parecem estagnadas, pois eles têm com pouca habilidade em se transformar ou improvisar.

Contudo, nós temos que notar que a qualidade de rajas tem um potencial duplo. Ele pode se movimentar para cima em direção a sattva ou para baixo em direção a tamas. Atividade nos possibilita alcançar um elevado estado de harmonia e bem-estar ou pode criar uma condição negativa de inércia e dissipação. O manejo de rajas é, portanto, a chave mestra para se operar com os guṇas. Isso ficará mais claro no próximo capítulo.

Āsana e os três guṇas

De acordo com a Haṭhapradīpikā, a principal função da prática de āsanas é reduzir a qualidade de rajas. Isso significa reduzir calor, agitação e agressão, o que produz calma, paz e harmonia no corpo e na mente. Isso se faz movendo-se da atividade física tensa e ansiosa ao estado de relaxamento e descanso, onde nos tornamos capazes de sentar e meditar.

Contudo, utilizar āsanas para se mover de rajas para sattva, implica que a pessoa execute posturas que já reduziram a qualidade de tamas em seu organismo, quer dizer, que elas eliminaram a inércia e o embotamento do corpo e mente. Mas este não é o caso da maioria das pessoas hoje em dia. Muitos de nós sofrem de tamas devido a um estilo de vida sedentário, uma dieta pesada e outros fatores. A energia de tamas está por trás da maioria dos casos de obesidade, depressão e baixa taxa de energia que acometem as pessoas de hoje.

Se uma pessoa tem tamas em excesso no organismo, primeiro ela deve orientar uma prática para reduzir este excesso. Isso requer o aumento de rajas através de fortes exercícios físicos, o que inclui não somente a prática de āsanas ativos, mas caminhadas, corridas e serviço voluntário abnegado (seva ou karma-yoga). Por exemplo, se uma pessoa tamásica não executar āsanas que energizam seus movimentos, quando tentar meditar irá acabar caindo no sono ou ceder a sua própria inércia e embotamento.

Aqueles que possuem a mente sattvíca ou limpa usualmente não necessitam da prática de āsanas. Pessoas assim facilmente assumem posturas meditativas e geralmente têm o corpo flexível, livre de toxinas. Suas mentes se encontram em paz. Suas energias mentais e prânicas se movem pelo corpo como luz. Contudo, tais pessoas são raras, particularmente nesta era rajásica onde estamos excessivamente ocupados e estimulados.

Contudo, pessoas que trabalham demais com a cabeça e negligenciam o corpo podem desenvolver sattva na mente, mas permitindo que tamas continue no corpo. Geralmente, nestas condições, o corpo permanece travado, com muita falta de flexibilidade, particularmente no pescoço e nos ombros. Pessoas assim precisam de uma prática forte e regular de āsanas para diminuir a quantidade de tamas no corpo, afim de que ele possa acompanhar o desenvolvimento de sattva na mente.

Aqueles que possuem a mente rajásica, particularmente as pessoas heroicamente impelidas, precisam de āsanas para relaxarem a intensa fabricação de energia e a agressividade da mente. Pessoas assim precisam controlar o prāṇa turbulento desenvolvendo maestria sobre as posturas meditativas. Entretanto, tipos rajásicos podem se envolver excessivamente na prática física, utilizando os āsanas como outra maneira de se produzir tensão através de movimentos dinâmicos-estressantes (rajásicos). Devemos nos lembrar sempre que a prática de āsanas não tem nada a ver com conquistas pessoais, mas ao contrario, revelar a verdadeira natureza do Ser, deixando o ego de lado.

A construção do sādhanā em relação aos guṇas

Como cada um de nós possui todos os três guṇas, o objetivo da primeira etapa do sādhanā é diminuir tamas. Isso consiste de 1. executar alguma prática de purificação (ṣaṭ-karmāṇi) e; 2. ativar ou estimular posturas para remover a fadiga, o embotamento e expelir as toxinas. É necessário trazer toda atenção ao corpo físico para remover a inércia que se acumulou nele. Por exemplo, na hora da manha, após o sono, tamas é essencialmente predominante, por isso acordamos sempre em um estado tamásico. Āsanas, prāṇāyāmas e kriyās estimulantes são necessários na prática da manhã para conter tamas em excesso no organismo.

O objetivo da segunda etapa do sādhanā é reduzir a agitação, acalmando rajas. Para isso, pratica-se āsanas e prāṇāyāmas que acalmam e relaxam. Nesta etapa, o foco da concentração sai do corpo e se estabelece na mente. É o que chamamos de āsana-pratyāhāra. A prática de āsana-pratyāhāra atua diretamente no manomaya-kośa, o que nos permite conhecer o movimento, natureza, qualidade, intensidade, resistência, força e fraqueza da mente. A experiência inicial é um profundo relaxamento experimentado durante a execução das posturas e a tranqüilidade e paz de espírito que se desenvolve lentamente com a prática. Os āsanas começam a trabalhar todas as tensões armazenadas no corpo e na consciência, liberando-as gradativamente. Com o progresso na prática ocorre o desvelar dos condicionamentos de nossa mente e a partir daí nos tornamos mais conscientes dos padrões condicionados que regem nossa vida, podendo trabalhá-los de forma progressiva e terapêutica. Este autoconhecimento permite que nós possamos sair do modo de reação e começar a trabalhar a consciência em outros níveis para despertar as potencialidades internas de nosso Ser. A execução de prāṇāyāma (que em si é uma forma de pratyāhāra) é importante nesta etapa, junto com mantras e práticas como yoga-nidrā e antar-mouna.

A terceira etapa do sādhanā envolve o aumento de sattva, o que ocorre através de uma meditação calma e focada na qual o corpo é completamente esquecidos e o prāṇa é restaurado e harmonizado em todas as suas funções. Este é um alto nível da prática de Yoga que ocorre na mais pura condição de sattva em que o praticante entra em contato com seu Ser mais elevado.

A constituição mental de acordo com os três guṇas

A Āyurveda e o Yoga utilizam os três guṇas para determinar nossa natureza mental ou espiritual. Isso ficará mais claro no próximo capítulo. Geralmente, um guṇa predomina em nós. Nós somos, fundamentalmente, tamásicos, rajásicos ou sattvícos. Contudo, ao passo que definimos indivíduos de um tipo constitutivo ou outro, devemos nos lembrar que todos nós possuímos aspectos de cada um dos guṇas. Nós temos nossos períodos de paz (sattva), nossas perturbantes flutuações (rajas), nossa inércia, embotamento e cegueira (tamas). A chave é aumentar nossas qualidades sattvícas e reduzir rajas e tamas. Precisamos evoluir de tamas (potencial latente) para rajas (desenvolvimento ativo) e para sattva (maestria completa).

Conduta física

Corpo sattvíco
Limpo, flexível, desapegado, exercício corporal suave.
Corpo rajásico
Enfeitado, ostentação, auto-indulgência, exercício corporal forte.
Corpo tamásico
Sujo, falta de cuidado com aparência, preguiçoso, falta de exercício.
Estado emocional

Emoções sattvícas
Amor, fé, devoção, compaixão, lealdade.
Emoções rajásicas
Ambição, asserção, raiva, paixão, orgulho.
Emoções tamásicas
Ódio, paranóia, violência, megalomania.
Estado mental

Mente sattvíca
Em paz, verdadeira, receptiva, limpa, perceptiva.
Mente rajásica
Impaciente, agitada, assertiva, argumentativa.
Mente tamásica
Ignorante, torpe, falsa, obstinada.
Nível espiritual

Alma sattvíca
Espiritual, compassiva, amorosa, iluminada.
Alma rajásica
Egoísta, impetuosa, ambiciosa, manipuladora.
Alma tamásica
Inconsciente, perniciosa, falsa, criminosa, pervertida.

Constituição ayurvédica

Os três doṣas não são apenas fatores gerais responsáveis pelas reações físicas. Eles são fatores específicos que criam diferentes tipologias energéticas nos seres humanos. Os tipos constitutivos, nos termos dos doṣas, podem ser mais bem compreendidos de acordo com seus equivalentes elementais. Os tipos vāta são dominados pelo ar, mas possuem um componente secundário que é o éter como espaço, principalmente nos ossos e juntas, que contêm vāta no corpo. Os tipos pitta são dominados pelo fogo, mas têm o componente secundário da água como líquidos quentes como sangue e o suco gástrico, que acumulam pitta. Os tipos kapha são dominados pela água, mas possuem o componente secundário da terra na forma da pele e membranas mucosas, que contêm kapha.

Tipos constitutivos da Āyurveda

·         Tipos vāta
Em um nível físico, tipos vāta são mais altos ou mais baixos que a maioria das pessoas. São magros com tendência a perder mais peso. Têm pouca circulação, pele seca, veias proeminentes e pouco tecido adiposo. A digestão é nervosa e variável, por isso facilmente ficam constipadas. Sofrem quando são expostas ao vento, tempo seco e frio.
Em um nível psicológico, são pessoas nervosas, impacientes, agitadas, ativas, expressivas e criativas. São emocionalmente sensíveis com predisposição ao medo e ansiedade. Sofrem de mudança de humor e opinião.
Concernente ao yoga-sādhanā, os tipos vāta se atraem por práticas energizantes que incluem āsanas, prāṇāyāmas e mantras. Gostam de ser ativas para fazer coisas que possam mudar suas vidas.
·         Tipos pitta
Em um nível físico, os tipos pitta têm a altura mediana. Possuem boa circulação, aparência radiante, extremidades quentes, pele oleosa e também quente. Têm muito apetite e sede e sua capacidade de eliminação é muito boa, mas geralmente o intestino é solto demais. Sofrem quando expostas ao calor, luz do sol e fogo.
Em um nível psicológico, são agressivos, dinâmicos, obstinados, focados e determinados. Emocionalmente aguçados, são assertivos, de opiniões fortes e com tendência a elevados estados de raiva.
Concernente ao yoga-sādhanā, os tipos pitta se atraem pela meditação e o trabalho com a mente. Naturalmente buscam a iluminação como o objetivo final de suas vidas. Utilizam os yogāsanas como mecanismo de desenvolvimento energético.
·         Tipos kapha
Em um nível físico, tipos kapha são geralmente mais baixos que a maioria das pessoas, mas podem ser altos também. Como crescem de forma corpulenta, têm a tendência de acumular água e são geralmente bem pesados. Têm pouca circulação e pele grossa, bem úmida. Seu apetite é constante, mas seu metabolismo é lento e o intestino preguiçoso. Sofrem quando exposto a umidade e frio.
Em um nível psicológico, são emocionalmente fortes com sentimentos estáveis. Calmos, contentes, leais e consistentes. Podem desenvolver profundos apegos, com muita dificuldade em deixá-los.
Concernente ao yoga-sādhanā, os tipos kapha preferem práticas devocionais, kīrtans, orações, adoração de deidades. Só se envolvem com a execução de āsanas se forem convencidos de que ela é essencial na manutenção de sua saúde.

Os doṣas e os fatores constitutivos

Os três doṣas (vāta, pitta e kapha) criam três diferentes tipos primários de constituições individuais de complexos mente-corpo. Nenhum deles é necessariamente melhor do que o outro. Cada tipo constitutivo apresenta suas qualidades e fraquezas. Cada um precisa do ajuste ou da adaptação necessária para se manter em equilíbrio. Portanto, torne-se consciente tanto das qualidades quanto das fraquezas de sua constituição.

·         Com sua natureza aquática e terrestre, tipos kapha possuem um corpo forte que armazena muita energia vital, mas podem ter falta de motivação e dificuldade de adaptação para usar apropriadamente essa energia.
·         Com sua flutuante natureza aérea, tipos vāta têm um corpo fraco e pouca energia, mas possuem grande capacidade de mudança e adaptação afim de protegê-lo.
·         Com sua natureza ígnea, tipos pitta possuem força física e energia moderadas, mas têm vigor mental e emocional, com uma determinação que os fazem perseguir fortes fatores causadores de saúde ou doença, dependendo de seus valores.

* Texto retirado da apostila do Curso de Aprofundamento em Yoga & Āyurveda ministrado pelo Instituto Kaula.



0 comentários:

Postar um comentário