sexta-feira, 28 de março de 2014



Swāmi Satyānanda Saraswatī

Texto tirado do livro «A Systematic Course in the Ancient Tantric Techniques of Yoga and Kriya», Yoga Publications Trust, 2004.


A prática meditativa que iremos descrever agora é a entoação do mantra auṃ. Nós poderíamos escrever uma enciclopédia sobre o assunto, mas pela concisão super-potente do mantra, procuramos reduzir a verborréia prolixa ao máximo. Se muita coisa pode ser dita e inferida sobre o assunto em poucas palavras, não existe a necessidade de causarmos constipação mental produzindo explicações super-elaboradas. Na verdade, o essencial a ser dito é: A-A-A-A-A-A-U-U-U-U-U-U-M-M-M-M-M-M.

Esta prática é muito simples de se explicar e os benefícios e a experiência que sua execução proporciona são muito profundos. O mantra auṃ é o rei dos mantras. A experiência do significado do mantra nos leva automaticamente a compreensão total de todos os outros mantras, que são, geralmente, limitados por sua intenção dirigida a pessoas ou propósitos específicos. Auṃ, por outro lado, não é específico e pode ser praticado por qualquer pessoa.

O mantra auṃ foi o som percebido pelos antigos ṛṣis (videntes) nos mais elevados estados meditativos. É por esta razão que a consciência contínua e intensa no auṃ pode levar o aspirante espiritual aos mesmos estados em que os antigos constataram o poder deste mantra.

Auṃ na Mandukya-Upaniṣad

A Mandukya-Upaniṣad é uma escritura vastamente conhecida que trata apenas do propósito e significado do auṃ. Ela diz: A sílaba auṃ é o universo. É Brahman (o absoluto). É o tempo – passado, presente e futuro – e aquilo que transcende o tempo. Ela continua: O Ser, que é um com auṃ, possui três aspectos e além destes três está o indefinido... o quarto.

A escritura continua a apontar significados para os três aspectos diferentes do auṃ, assim como sua relevância em um todo conciso. Nós procuramos sumarizar esses significados a seguir, tanto em níveis macrocosmicos quanto microcosmicos:

É o mantra cósmico auṃ que une a existência limitada com a ilimitada. É o auṃ que funde o micro no macrocosmo, o Ser individual com o Ser universal. O auṃ atua como uma ponte. O texto conclui: O quarto, o Ser, é auṃ. Ele é inexprimível e está além da mente. Nele, todo o universo está contido... seja lá quem conheça o auṃ, o ser, se torna Ser.

Esta curta escritura de doze versos apenas traz o conhecimento arcaico dos antigos videntes acerca do mantra auṃ. Contudo, enfatizamos que é importante não se apegar aos conceitos e teorias acerca do auṃ, pois seu significado real é impossível de se descrever em palavras. Todas as teorias escritas sobre o tema são muito superficiais, são meras palavras que, embora tragam alguma informação, na realidade destorcem o significado real. As letras A-U-Ṃ representam, assim diz a tradição, Brahma (o criador), Viṣṇu (o sustentador) e Śiva (o destruidor), bem como inúmeros outros significados. Mas nós sustentamos que o real significado de auṃ somente pode ser conhecido pela experiência direta. E mesmo após a experiência, uma pessoa simplesmente não poderia descrever o que realmente é o auṃ... ela se torna incapaz de descrever o que experienciou. Somente no silêncio ela é capaz de realizar sua compreensão.

Microcosmo
Macrocosmo
Estado de experiência
A
Corpo físico

Universo material
Estado desperto: percepção apenas do exterior através dos sentidos.
U
A mente

Mente cósmica
Estado de sonho: percepção das impressões mentais.
Consciência intuitiva individual

Consciência do substrato universal
Sono profundo: experiência da bem-aventurança e do conhecimento revelado.
AUṂ
Ser (ātman)

Brahman
Quarto estado (turīya): além de toda conceitualização.

Outras escrituras de referência

Existe um grande número de escrituras indianas que mencionam o mantra cósmico auṃ. Todas elas abordam o assunto de forma bem entusiasmada. O que se segue são algumas citações que selecionamos:

Aqueles que buscam a iluminação deveriam refletir sobre o som e o significado do auṃ. Auṃ é o Brahman indestrutível. Auṃ é o arco, o ser individual é a flecha e Brahman o alvo. Quando a flecha é lançada pelo arco caminha em direção ao alvo. Desta mesma maneira, o sādhaka [aspirante espiritual] deveria refletir sobre o auṃ e se fundir com Brahman.

Dhyānabindu-Upaniṣad

O fogo, potencialmente presente na lenha, não é visto até que um graveto seja friccionado contra o outro. O Ser é como o fogo; ele é realizado pela constante consciência no sagrado auṃ. Deixe que seu corpo seja o graveto que é friccionado contra o outro graveto que é auṃ. Dessa maneira você irá realizar sua verdadeira natureza mais oculta, assim como o fogo, em um sentido, está oculto na lenha.

Śweteswatara-Upaniṣad

Auṃ é o som sagrado do universo. É o som do Ser.

Maitri-Upaniṣad

Auṃ é mencionado em inúmeras outras escrituras da tradição do Yoga como a Bhagavadgītā, o Yoga-Vaśiṣṭha e muitos outros textos tântricos.

Auṃ não está confinado aos sistemas espirituais da Índia. Ele é encontrado na fé islâmica na forma modificada do Amin e na religião judaico-cristã na forma do Amém. Não é preciso ter muita imaginação para ver que estes mantras vêem da mesma raiz. É dito nas escrituras antigas da Índia que o auṃ foi a causa primordial do universo material, o poder de Brahman (o absoluto) através do qual o universo foi criado. Auṃ é a śakti do Tantra. No evangelho segundo São João, o primeiro versículo diz: No início foi a palavra (auṃ), a palavra foi feita por Deus (Brahman) e a palavra era Deus.

Isto está completamente em conformidade com o que foi declarado pelos antigos videntes, registrado para posteridade nas Upaniṣads e outras escrituras da Índia. Compare a passagem bíblica acima com a seguinte citação da Kaṭha-Upaniṣad: A palavra (auṃ) é verdadeiramente Brahman. Ele é o mais elevado. Quem conhece seu segredo e lhe presta adoração, rapidamente atinge o supremo objetivo e conhece todas as coisas.

Portanto, auṃ é um mantra universal. Para conhecer seu real significado, o melhor a se fazer é começar entoá-lo, ao invés de se encher de informações que podem, no fim, iludir e não iluminar.

Pronúncia

Auṃ pode ser entoado de maneira lenta ou rápida. Cada entoação tem seu objetivo e você deveria praticar ambas no intuito de descobrir qual o método de vocalização de sua preferência. Por exemplo, quando entoado rapidamente, pode ser usado como um poderoso método de sincronização com as batidas do coração. Dessa maneira, o auṃ pode ser sentido ressoando por todo o corpo em harmonia com o ritmo natural do coração. Sob estas circunstâncias, a entoação do auṃ se torna espontânea. Muitos praticantes visualizam o símbolo do auṃ sendo emanado do coração. Outro método excelente é coordenar a entoação do auṃ com o pulsar do ponto entre as sobrancelhas. Este é um método poderoso de se induzir a introspecção, o relaxamento e a meditação. A entoação rápida do auṃ deve ser praticada mentalmente e não verbalmente, pois a entoação alta (verbal) irá suprimir a percepção das batidas do coração ou a pulsação do ponto entre as sobrancelhas.

Se o auṃ é entoado de maneira lenta, pode ser prolongado por muitos segundos, dependendo da capacidade de cada indivíduo. Deve haver uma pronúncia bem definida de cada uma das letras A-U-Ṃ, com uma gradual transição de uma para outra. A letra a é pronunciada como ah ou a na palavra pau. A letra u é pronunciada como oo na palavra iodo. A letra m não é sonoramente emitida pelos movimentos dos lábios como usualmente se faz. Ao contrario, ela é vibrada como um zumbido: m-m-m-m-m-m. Este zumbido pode ser prolongado na medida da capacidade individual, mas normalmente o m deveria gradualmente diminuir sua vibração no fim da entoação.

A entoação longa do auṃ pode ser tanto mental quanto verbal, embora para maioria dos propósitos a entoação verbal seja preferida. Isso se aplica particularmente aos iniciantes, pois a entoação alta ou em grupo é mais eficiente para acalmar a mente ansiosa. Portanto, a entoação verbal do auṃ é mais adequada para a maioria das pessoas, pois a mente humana se encontra em um contínuo estado de conflito e tumulto. Em outras palavras, a entoação verbal do auṃ confina e direciona a atenção da mente. Na medida em que o praticante é forçado a se concentrar no som e na pronúncia do auṃ, a mente tende a se esquecer de suas preocupações e ansiedades casuais, bem como as distrações mentais.

Na medida em que você progredir na meditação, pratique com mais intensidade a entoação mental, pois ela é mais efetiva na condução da introspecção, uma vez que sua mente se encontra razoavelmente relaxada. Uma maneira excelente de se praticar é iniciar a entoação verbal (pelo maior tempo possível) e depois convertê-la em entoação mental. Este é um método sistemático de recolhimento da consciência do mundo exterior para dirigi-la ao interior com a finalidade de se explorar as camadas mais profundas da mente.

O auṃ deve ser pronunciado, seja mental ou verbalmente, de forma harmônica. Seu som deve vir espontaneamente, sem esforço. É através do som contínuo e melodioso que a mente se torna relaxada. A Dhyānabindi-Upaniṣad diz: Como o fluxo contínuo do filamento do óleo e como a vibração do sino. Essa é a maneira de se pronunciar o auṃ e a maneira de realmente conhecer o significado dos Vedas.

Consciência

Esteja consciente dos dois pontos abaixo quando entoar o auṃ:

1.    O som, seja verbal ou mental;
2.    Reflexão sobre o significado do auṃ.

Manter a consciência nos dois pontos acima pode ser um pouco difícil logo no início, mas se conseguir com o tempo executar essa tarefa, poderá colher os melhores benefícios de sua prática. Se desejar, pode estar consciente do que se segue durante a prática:

·         No som combinado com seu significado;
·         No som combinado com a concentração no símbolo;
·         Concentração no símbolo combinada com a reflexão sobre seu significado.

Se você pratica trāṭaka combinada com auṃ, então a imagem pode ser interna ou externa, dependendo da sua capacidade de visualização. A concentração interna (antar-trāṭaka) no símbolo do auṃ é considerada a melhor, mas é um pouco difícil para o iniciante por sua dificuldade em manter uma imagem estável por um longo período de tempo.

Você pode combinar antar e bahir-trāṭaka com a entoação do auṃ. Caso queira utilizar uma imagem do auṃ para este propósito, escolha uma que lhe chame mais atenção ou, se preferir – o que é muito melhor –, pode desenhar sua própria imagem. Contudo, ela não deve ser muito grande, pois o objetivo é direcionar o foco da consciência sobre um campo limitado de atenção.

Se seu objetivo é direcionar a consciência para imagem interna do auṃ, então pode fazê-lo projetando-a na tela negra na frente de seus olhos fechados (cidākāśa) ou no centro do coração (hṛdayākāśa) como sugerido pela Dhyānabindu-Upaniṣad: Concentre o auṃ no centro do coração como se ele fosse uma vela acesa do tamanho de seu polegar. Tenha certeza de que irá manter a consciência durante a entoação do auṃ.

Mas não se veja obrigado a conjugar a prática de trāṭaka com a entoação do auṃ. Se preferir, apenas esteja consciente do som. Esse é um método poderoso que rapidamente alivia a tensão na mente.

Entoando o mantra auṃ

Muito pouco é necessário ser dito a partir daqui, pois a prática é muito simples e as ponderações mais relevantes nós já explicamos. O que se segue é uma breve descrição prática de consciência no som do mantra. Se preferir, mantenha concentração integrada no símbolo do auṃ e na reflexão de seu significado.

Técnica
Sente-se confortavelmente em uma postura meditativa e feche os olhos.
Comece a entoar o auṃ, seja de forma rápida ou lenta.
Se for conveniente, entoe em voz alta.
Tente se manter completamente consciente do som do auṃ. Dissolva todo seu ser no som do auṃ.
Deixe que o som emane de todo seu ser.
Sinta todo seu corpo e mente ressoando em harmonia com o som.
Imagine que você é simultaneamente emissor e receptor do mantra auṃ.
Você é como uma estação de rádio.
Esteja completamente consciente do auṃ (pausa grande).
Interrompa a entoação do auṃ e esteja consciente da pulsação no ponto entre as sobrancelhas.
Quando conseguir detectar esta pulsação, sincronize-a com a entoação mental do auṃ.
Esteja consciente do som interno do auṃ no ponto entre as sobrancelhas, vibrando em harmonia com sua pulsação (pausa).
Inspire e expire. Retome a consciência do exterior. Finalize a prática entoando auṃ três vezes, de maneira lenta e prolongada.

Duração

Muitas pessoas praticam essa técnica simples e poderosa por horas. De fato, os praticantes tentam manter a consciência na entoação mental do auṃ continuamente, mesmo que estejam trabalhando, se divertindo, comendo ou dormindo. Sob essas circunstâncias, uma pessoa pode experimentar estados profundos de meditação. Pratique quanto tempo tiver disponível.

Reflexão

Este é um método jñāna-yogī e pode ser praticado por pessoas que possuem boa concentração e refinada determinação. Se você deseja realmente conhecer a profundidade do auṃ, por este método poderá fazê-lo. Pode levar algum tempo, mas o significado logo lhe será revelado. Ele pode surgir como o estrondo de um trovão ou um impacto que quebra a barreira do som. Quando conhecer seu significado através da experiência pessoal, então todo seu ser irá se modificar, pois você conhecerá o impossível.

Benefícios

Os benefícios são profundos. Este é um dos métodos mais poderosos para se relaxar o corpo e a mente. Como tal, ele rapidamente traz clareza e paz mental e ainda auxilia na prevenção e alívio de desordens psicossomáticas. Quando se sentir tenso, chateado, furioso, deprimido etc., entoe auṃ. Essa prática simples é capaz de promover estados meditativos avançados.

Integração com outras práticas meditativas

A entoação do auṃ pode ser conjugada com inúmeras técnicas meditativas. De fato, toda prática meditativa deveria começar e terminar com a entoação do auṃ. Esta é uma importante parte do kriyā-yoga, onde ele é combinado com técnicas yogīs.


Tradução livre de Fernando Liguori.

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