segunda-feira, 17 de março de 2014



Fernando Liguori


O ser humano, do ponto de vista yogī, é extensivo e exaltado. O Yoga ensina que no âmago de nosso ser existe uma chispa divina ou realidade espiritual conhecida como ātman, a alma. De acordo com a doutrina do Yoga, o ser humano é uma entidade espiritual interagindo no mundo material enquanto utiliza como veículo o complexo corpo-mente. Este complexo corpo-mente é composto por:

·         Suprimento de energia (prāṇa)
·   Sistema sensorial | perceptivo que detecta as atividades do mundo físico (jñānendriyas)
·         Sentido de egoidade (ahaṃkāra)
·         Memória (citta)
·    Mecanismo cognitivo para acessar as impressões e definir o comportamento (buddhi e manas)
·  Mecanismo afetivo (emoções e sentimentos motivadores) que ativam o comportamento (manas)
·         Órgãos de ação para interagir ou evitar objetos externos e agir de maneira distinta no mundo (karmendriyas)

As camadas da existência humana

Do ponto de vista yogī, o complexo corpo-energia-mente é dividido em cinco partes: o corpo grosseiro ou denso, o corpo de energia, o corpo mental, o corpo de sabedoria e finalmente o corpo de bem-aventurança. Cada um deles é conhecido pelo nome de kośa que em sânscrito significa camada ou invólucro.

Então o que são os kośas? Seriam eles camadas ou dimensões da existência humana?



Cada uma das cinco camadas reveste, cobre e obscurece a consciência mais sutil que está no interior. Assim, camada é um bom nome para descrever estes corpos porque cada kośa está encoberto pelo próximo. Estes cinco corpos ou níveis cobrem todo espectro da natureza humana e provê um modelo-base para evolução de todos nós como espécie.

Os cinco kośas são:

1.    Corpo físico – annamaya-kośa
2.    Corpo de energia – prāṇamaya-kośa
3.    Corpo mental – manomaya-kośa
4.    Corpo de sabedoria – vijñānamaya-kośa
5.    Corpo de bem-aventurança – ānandamaya-kośa

Eles circundam ou encobrem o espírito divino em cada um de nós, o ātman.

O corpo físico: annamaya-kośa
(Anna = alimento)

O primeiro corpo, camada, invólucro ou nível de experiência é o corpo físico ou corpo de alimento, o annamaya-kośa. A palavra anna significa alimento e maya significa constituído de. É o nível grosseiro da existência e é referido como corpo de alimento devido sua dependência de comida, água, ar etc. É uma camada que também necessita de prāṇa. Embora seja possível viver sem alimento por seis semanas, água por seis dias e ar por seis minutos, a vida cessa imediatamente no momento em que o prāṇa deixa o corpo.

O termo corpo de alimento nos relembra que fisicamente nos tornamos aquilo que comemos, portanto, dê atenção a que você come. É muito importante manter o corpo em um ótimo estado de saúde se queremos seguir este caminho.

O corpo físico é a camada material de nossa existência. Como ele é o veículo através do qual interagimos com o universo criado, o cuidamos e nutrimos para que ele possa nos dar regozijo na vida e nos permita atingir níveis elevados de consciência sem interrupções em nosso progresso.

As principais práticas para se trabalhar o corpo físico são as posturas do Yoga (āsanas). Com elas ganhamos flexibilidade, relaxamento, tonificação e força muscular, equilíbrio, alívio do estresse e condicionamento geral. Os āsanas também afetam o outros kośas, especialmente o prāṇamaya-kośa, equilibrando a energia, aumentando-a e removendo bloqueios prânicos.1

De fato, é uma verdade básica revelada pelo Yoga que qualquer coisa que tenha alguma influência (negativa ou positiva) em qualquer um dos kośas exercerá influência nos outros também. Todas essas camadas são tão relacionadas que virtualmente formam uma única entidade. Isso significa que as práticas que beneficiam os outros kośas também ajudarão o corpo físico, e nós podemos comprovar isso, por exemplo, com a sensação física de bem-estar após uma cessão de prāṇāyāma ou o relaxamento do corpo após uma prática meditativa.

O Corpo de energia: prāṇamaya-kośa
(Prāṇa = energia)

O segundo corpo é o prāṇamaya-kośa, o campo de energia do indivíduo. O nível de experiência aqui é mais sutil que o corpo físico, o qual ele permeia e suporta. Por sua vez, o prāṇamaya-kośa é suportado pelos kośas mais sutis. Juntos, os corpos físico e prânico constituem a base da estrutura humana, referida como ātmapuri (cidade da alma). Eles formam a base para experiências dos corpos superiores.

Prāṇa é a força vital que permeia o corpo e toda matéria. Ele energiza todos os outros kośas e é vital para vida em todos os níveis. Contudo, existe uma energia específica no prāṇamaya-kośa. O Yoga vê o corpo de energia de forma diferente do ponto de vista ocidental. A ciência da fisiologia acredita que a energia produzida nas células do corpo pelo processo de queima da glicose é a única fonte de energia disponível para nós. Os yogīs acreditam que essa é a fonte, mas alegam que o veículo corporal, energético e mental obtem sua energia de outras fontes, incluindo a respiração, a comida, a água e até mesmo diretamente da energia do universo. Assim como todos os níveis de prāṇa, o prāṇamaya-kośa é parte do vasto campo de energia do universo (mahā-prāṇa).

O Yoga vê o corpo de energia como uma entidade discreta que toma o mesmo espaço que o corpo físico, existindo como uma superposição sobre ele, um envoltório. Nele, as energias fluem através de canais denominados nāḍīs. Estes canais não são os nervos. São fluxos distintos de prāṇa independentes da estrutura física. Existem muitas similaridades entre as nāḍīs e os meridianos da acupuntura e um estudo avançado na comparação direta destes sistemas está em andamento. As escrituras dizem que existem aproximadamente 72.000 nāḍīs, mas esta é uma estimativa até mesmos nos śāstras. Portanto, é muito difícil saber, com certeza absoluta, a quantidade de nāḍīs.


Iḍā, piṅgalā e suṣumnā

As três nāḍīs mais proeminentes são representadas ao longo do eixo espinhal. O canal ou nāḍī central é conhecido como suṣumnā. As outras duas nāḍīs, iḍā e piṅgalā, percorrem todo eixo ao lado de suṣumnā. Esta nāḍī representa o equilíbrio e iḍā e piṅgalā, a lua e o sol como aspectos da natureza, os opostos da vida humana.

·         Iḍā: é a força mental, associada com a atividade mental, criatividade, introversão, feminilidade, força lunar, a cor azul, o lado direito do cérebro e a narina esquerda.
·         Piṅgalā: é a atividade física, energia solar, extroversão, masculinidade, a cor vermelha, o lado esquerdo do cérebro e a narina direita.
·         Suṣumnā: se torna ativa quando iḍā e piṅgalā estão equilibradas. Este é o melhor momento para práticas espirituais, meditação etc. Quando ela está ativa, o fluxo de energia conhecida como kuṇḍalinī é capaz de ascender através dela.

Suṣumnā percorre o eixo espinhal pelo centro e iḍā e piṅgalā são representadas como nāḍīs gêmeas que percorrem lados opostos de suṣumnā, cruzando-a nos seis pontos representados pelos cakras. Muitas práticas de Yoga têm como objetivo equilibrar a quantidade de ar que flui através das narinas, influenciando assim diretamente iḍā e piṅgalā.2

Os cakras

Os seis pontos ao longo da suṣumnā onde iḍā e piṅgalā se cruzam são os cakras. A palavra cakra significa roda ou vórtice. Os seis principais cakras são os centros psíquicos no corpo sutil que possuem representação em todos os kośas – o corpo físico, o corpo de energia, o corpo mental, o corpo de sabedoria e o corpo de bem-aventurança. No corpo de energia (prāṇamaya-kośa) é dito que eles são caixas de junção distribuindo energia por todo o corpo. O assunto dos cakras será abordado com detalhes em breve.



Os cinco prāṇas

De acordo com os ensinamentos do Yoga, em algumas áreas do corpo o prāṇa atua em diferentes funções e em concordância com elas, recebe nomes diferentes: udāna, prāṇa, samāna, apāna e vyāna. Com as práticas do Yoga estas diferentes funções são equilibradas e otimizadas para manter boa saúde de todo complexo corpo-mente. Suas áreas físicas correlatas são:

·         Udāna – cabeça, braços e pernas
·         Prāṇa – peito
·         Samāna – parte superior do abdômen
·         Apāna – parte inferior do abdômen e pélvis
·         Vyāna – todo o corpo, reserva suplementar energética para todos os outros prāṇas.

O Corpo mental: manomaya-kośa
(Mana = mente)

O terceiro corpo é o manomaya-kośa, a dimensão mental. É o nível de experiência da mente consciente que mantém os dois corpos mais densos (annamaya e prāṇamaya-kośas) unidos como um todo integrado. É a ponte entre os mundos interno e externo, cobrindo as experiências e sensações do mundo exterior e do corpo de intuição ou sabedoria, bem como as influências dos corpos causal e intuitivo no corpo físico.

O manomaya-kośa é o nível mental que lida com os desejos e necessidades institivas mais básicas do indivíduo. Essas necessidades são: proteção do perigo, obtenção de alimento e o encontro de um cônjuge para a criação de uma prole. Ele atua em resposta as impressões captadas por nossos sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato), que estão constantemente monitorando o mundo exterior nos orientando sobre qualquer circunstância que possa interessar a nossa segurança, alimentação disponível, sexo ou perigo para nossa prole.

Assim, a mecânica do corpo mental atua relativamente em um nível básico, equivalente a mente instintiva de um animal, mas essa mecânica é processada pelos níveis superiores da mente humana para que melhores decisões sejam tomadas, para que melhores respostas perceptivas possam ser experienciadas e para que resulte em uma qualidade melhor de comportamento.

O corpo mental consiste de quatro partes que consistentemente interagem entre si, formando um conjunto de ação eficiente:

1.    A mente instintiva (manas).
2.    O sentido de egoidade (ahaṃkāra).
3.    Memória (citta).
4.    Nível inferior da mente intelectual (buddhi).

1. A mente instintiva (manas). Seu trabalho é dar sentido ao mundo na forma em que o experienciamos. Ela responde as percepções sensoriais e chega a conclusões como esta: o que é isto? Isso é bom ou mal para mim? Isso irá me ferir? Isso é uma refeição? Essa é uma possível parceira? Se deixarmos manas por seus próprios recursos e se ela estiver em alerta sobre qualquer circunstância, usualmente será motivada a responder de três maneiras: luta, fuga ou amizade.

2. O sentido de egoidade (ahaṃkāra). Obviamente, se nós temos de proteger a nós mesmos ou tirar algum proveito do mundo, devemos ter um sentido que nos mantenha a parte dele. É aqui que o eu se separa do aquilo. Esse é o sentido de egoidade que os yogīs chamam de ahaṃkāra.

3. Memória (citta). Imagine um animal na selva – os olhos detectam algo se movimentando que é separado do eu. Manas quer saber: o que é isso? Ela imediatamente pergunta a memória: eu já vi um destes antes? De acordo com a resposta a mente decide se vai correr, se vai atrás da presa e comê-la ou ainda, se vai deixá-la passar pois é amiga. Este é o papel da memória neste nível. A memória é o armazém de nossos encontros passados e das experiências que tivemos com eles. Essa informação é crucial para nos ajudar a decidir o que fazer na hora certa.

4. Mente intelectual (buddhi). Em seu nível básico de funcionamento, buddhi fornece um ajuste intelectual que auxilia manas a tomar melhores decisões para nossas interações com o mundo. Buddhi está em ação nos níveis mentais mais elevados, alinhado com a sabedoria imperturbável do corpo de bem-aventurança (ānandamaya-kośa). Mas aqui nós vemos buddhi no nível inferior do pensamento racional a serviço de manas – muito abaixo de suas habilidades exaltadas, mas muito valioso no manejo de nossas atividades diárias.

Assim, nós vimos às respostas físicas, vitais e mentais do indivíduo operando juntas, mas como humanos nós somos capazes de alcançar funções muito mais elevadas. É claro, existem pessoas que, por alguma razão ou outra, habitualmente funcionam no nível de animais inteligentes (e às vezes nem tão inteligentes assim). Mas de acordo com os yogīs, até mesmo essas pessoas são espíritos em essência, habitando um veículo corpo-energia-mente para desenvolver suas qualidades e potenciais superiores.

O corpo de sabedoria: vijñānamaya-kośa
(Vijñāna = sabedoria)

O quarto corpo é o vijñānamaya-kośa, o nível da experiência psíquica que se relaciuona com a mente subconsciente e inconsciente. Essa esfera permeia o manomaya-kośa, mas é bem mais sutil que ele. O vijñānamaya-kośa é a conexão entre a mente individual e a mente universal. O conhecimento interior alcança a mente consciente neste nível. Quando este corpo é desperto, o praticante começa a experienciar a vida em um nível mais intuitivo, vê a realidade subjacente por trás das aparências. Isso leva a sabedoria.

Este é o nível superior de buddhi – bom intelecto, intuição, sabedoria, conhecimento superior e habilidades psíquicas que brilham do ānandamaya-kośa. No nível do vijñānamaya-kośa nós experienciamos as qualidades elevadas de citta onde muitas impurezas são purgadas da mente inconsciente. O ahaṃkāra neste nível é o sentido do eu que faz parte do todo que é um em todos nós. Nossos sentimentos não são mais emoções brutas de sobrevivência e exploração, mas formas evoluídas de amor, compaixão, regozijo, segurança, realização e relações sadias e maduras em todos os sentidos.

Com o Yoga nós aumentamos o acesso e desenvolvemos o vijñānamaya-kośa trabalhando com os três kośas inferiores eliminando os caminhos que bloqueiam sua expressão, reduzindo nossa identificação com eles. Mas nós podemos também trabalhar diretamente com esta mente superior; nós podemos exercitá-la dando-lhe boas atividades para fazer (interrompendo o enfadonho monólogo interno da mente inferior). Podemos explorar novas possibilidades, novos filósofos, ler mais e praticar todas as áreas do Yoga. Podemos nos associar a pessoas que se encontram em níveis mentais superiores, pensadores, pessoas humildes, karma-yogīs etc. Podemos trabalhar duro, fazer coisas boas e continuar sempre na busca por uma consciência mais elevada.

O corpo de bem-aventurança: ānandamaya-kośa
(Ānanda = bem-aventurança)

O quinto corpo é o ānandamaya-kośa, o nível da bem-aventurança e beatitude. É o corpo causal ou trancendental, a abóboda do prāṇa mais refinado. Este é o kośa que está em contato mais íntimo com o espírito puro – o ātman –, a emanação do divino. A bem-aventurança não é apenas uma emoção. É uma inefável experiência de paz, amor e êxtase do ser que está em contato com a consciência última.

O que nós podemos dizer sobre este nível de experiência humana? Não existem palavras para isso! Como nós podemos imaginar o estado de unidade com o Absoluto com nosso nível ordinário de consciência? Como podemos conceber a segurança total, a bem-aventurança transcendental, o vasto poder de Deus, o amor cósmico, a onisciência e a comunicação total com o espírito universal que uma pessoa neste estado está experienciando?

Mas os yogīs que estão neste nível nos dizem que esta é a verdadeira realidade e, de fato, que todos nós já estamos neste mesmo nível. Que cada um de nós já alcançou este nível elevado de consciência – que já somos puros em espírito. Contudo, estamos presos nos níveis inferiores de consciência. Estamos tão distraídos com os dramas de nossas vidas que não percebemos quem verdadeiramente somos. Necessitamos transcender estes dramas para que possamos resgatar nossa verdadeira herança espiritual.

Raio X do homem

O seguinte quadro comparativo tem a finalidade de facilitar a identificação dos corpos segundo os capítulos 1 e 2.

Corpo (śarīra)
Invólucro (kośa)
Estado de consciência
Corpo físico: śthūla-śarīra
Annamaya-kośa
Vigília

Corpo de energia: sūkṣma-śarīra
Prāṇamaya-kośa
Manomaya-kośa
Vijñānamaya-kośa

Sonho
Corpo causal: karāṇa-śarīra
Ānandamaya-kośa
Sono profundo



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