domingo, 13 de abril de 2014




Fernando Liguori


O espírito da tradição yogī nos lega que, para se atingir os mais elevados ideais de transcendência espiritual, necessitamos daquilo que se chamou nas primeiras Upaniṣads de ideal de sacrifício. Essa palavra, sacrifício, como hoje a concebemos, está muito longe de seu profundo significado, conforme compreendido pelas sociedades antigas.

É muito difícil para mente comum ocidental conceber a ideia de sacrifícios humanos em larga escala, como acontecia entre os maias, astecas e nos primórdios da civilização védica na Índia.1 No entanto, uma compreensão acerca do verdadeiro significado deste tipo de sacrifício ritual é importante para um entendimento profundo do ideal yogī de autotranscendência que floresceu junto as primeiras Upaniṣads.

Consideremos, por um momento, a cultura maia. Eles acreditavam que a ordem cósmica poderia ser restaurada ou mantida pelo derramamento de sangue, especialmente de nobres e guerreiros valentes vencidos em batalha. A potência do ritual sacrificial tinha uma conexão direta com o grau de dificuldade envolvido na conquista do inimigo. Aqueles selecionados para o sacrifício eram pintados de azul (a cor do sangue desoxigenado), torturados ao ponto de derramarem seu sangue e posteriormente mortos, tendo os corações arrancados do peito aberto a golpes. O coração era exposto ao Sol e depois queimado até as cinzas, o que nutri as divindades. A oferenda imitava o sacrifício arquetípico de Quetzalcoatl, o deus ubíquo adornado de pernas – criador do universo. Uma ideia que teve sua contra parte na Índia antiga nos ritos de sacrifício (puruṣamedha).

Por trás deste insensível costume de arrancar o coração para fora do peito, reside a equiparação ritual de sangue com o poder da vida.2 Como em muitas culturas arcaicas, a pré-civilização védica acreditava na necessidade de se derramar o sangue humano na terra a fim de se melhorar a vida das divindades, guardiãs da ordem cósmica. Com a evolução da consciência ritual, o sangue menstrual também adotou um papel superlativo nas sociedades aborígenes da Índia antiga, onde sacerdotisas especialmente aptas a nutrir a terra com sua energia vital (o sangue menstrual), derramavam-no nos campos em busca de fertilidade após intensas práticas psicosexuais.

Outro ponto importante na relação entre o princípio da vida e o sangue foi à observação de que a jovem mulher, ao parar de sangrar pela suspensão do período de catamênio, dá inicio ao processo em que uma criança nasce através de sua vulva (yoni). Correlacionando os dois fatos, foram estabelecidos cultos envolvendo o sacrifício de animais, em que o sangue era utilizado como oferenda aos deuses e deusas, assim como cultos à vulva, considerada um portal mágico capaz de trazer uma vida do mundo dos espíritos para o mundo dos humanos.

Esta é talvez uma das raízes do culto a vulva ou portal da vida denominado yoni-pūjā, como uma forma de celebração da própria vida.

Deste ponto em diante a mulher passa a ser percebida como uma representação física da Deusa Mãe, aquela que trouxe o Cosmos à vida, e seu corpo passa a ser cultuado como o cálice sagrado ou templo vivo da Deusa.3

Hoje em dia, rituais sacrificiais que envolvem a imolação de seres humanos e animais existem, mas são uma realidade distante. Por exemplo, os tradicionalistas da escola Mīmānsā, um dogmático sistema de interpretação das escrituras védicas que versa como devem ser efetivados os rituais e cerimônias religiosas, continuam a fazer oferendas sacrificiais, mesmo enfrentando muita oposição no decorrer dos séculos.

De qualquer maneira, o sacrifício era destinado a assegurar a continuidade da prosperidade da comunidade, ou de restaurá-la se, por algum motivo, ela tivesse sido solapada. Assim, os sacerdotes védicos sentiam que precisavam ofertar suas melhores e mais valiosas posses. Para eles, eram os animais domésticos, principalmente o gado e, em ocasiões especiais, cavalos. Em épocas anteriores, a vida humana, pois esta era considerada mais preciosa do que qualquer outra forma de vida e por esta razão era tida como a mais elevada oferenda sacrificatória para as divindades, ou poderes invisíveis.4

No entanto, através das eras, esta idéia sacrificial tomou outras formas e já no período das primeiras Upaniṣads a palavra sacrifício tornou-se sinônimo de autotranscendência. Em outras palavras, na época dos Vedas e nas que se seguiram, os rituais sacrificiais eram um aspecto importante da tradição dos sacerdotes e videntes (ṛśī). Apenas na época das Upaniṣads os sábios começaram a interiorizar os rituais, i.e. utilizar seu próprio corpo-mente como altar de sacrifício e seu próprio amor e devoção como oferendas para o fogo da rigorosa autodisciplina e auto-oferenda.

Como qualquer dicionário nos informa, a palavra sânscrita yoga5 originou-se da raiz verbal yuj (“jungir”, “unir”, “disciplinar”), que está intimamente conectada à raiz verbal yaj (“venerar por meio do sacrifício”), formando o importante termo yajñā, ou “sacrifício”. Assim, Yoga pode ser definido, de maneira sucinta, como a disciplina do autosacrifício ou autoentrega que, em termos mais contemporâneos, podemos chamar de autotranscendência, i.e. a transcendência da ilusão de ser um corpo-mente-personalidade limitado.

Uma palavra cognata é yāga, que possui as mesmas conotações de yajñā. Ela é muitas vezes utilizada no sentido de antar-yajñā, i.e. “sacrifício interior”, um ato de total renúncia de todo apego a coisas externas e relações sociais. Mas acima de tudo, espera-se que o yogī renuncie ao ego, a identidade construída por meio da qual nos apegamos ou abrimos mão do corpo-mente e ao mundo. “Abrir mão” do ego é uma das atitudes essenciais a ser cultivada no caminho do Yoga, conforme exposto já nas primeiras Upaniṣads, cerca de 1000 a.C.

Desta maneira, em detrimento dos videntes védicos que utilizavam sacrifícios externos para focar a mente e elevá-la as alturas extáticas – onde podiam perceber de modo intuitivo a lei cósmica e até mesmo penetrar o envoltório cósmico para descobrir a Singularidade Últuma –, os sábios das Upaniṣads descobriram e louvaram o “sacrifício interior” como recurso fundamental para compreender a Realidade Transcendental. As suas investigações espirituais levaram à criação do Yoga, tal como o conhecemos.

O Yoga é sacrifício interior e autosacrifício. Os yogīs das Upaniṣads não requeriam mais rituais externos para concentar a mente errante. Eles aprenderam a reconhecer que a própria mente era suficiente para operar o milagre da profunda autotranformação. O objetivo central de todas as práticas de autosacrifício, tais como o Yoga, é de transcender a condição humana e, portanto, também, de transcender o próprio cosmos.

Essa transcendência não implica, de modo algum, em uma obliteração do ser humano ou do mundo, como tem-se pensado. Ao contrário, é uma idéia muito antiga de que, ao transcender a condição humana, tornamo-nos plenamente o que somos – enquanto Realidade Última – e, por esse motivo, podemos contribuir com a ordem e harmonia cósmica. Apenas o ego é considerado como uma fonte de distúrbio no cosmos. Dissolver a ilusão do ego, em contrapartida, tem um efeito salutar no mundo como um todo.

A tradição tântrica formulou um símbolo poderoso que capta o âmago do espírito da autotranscendência e seus efeitos salutares: o mito da deusa Chinnamastā (“Aquela que é decaptada”). Esta divindade é uma das deusas mais impressionantes do panteão tântrico. Geralmente, sua imagem iconográfica é representada na postura em pé, segurando em sua mão direita uma espada ensanguentada e na esquerda sua própria cabeça cortada, com o sangue jorrando de seu pescoço em três direções. Os jatos direito e esquerdo, respectivamente, entram na boca de dois devotos, um de cada lado da deusa, ao passo que o jato do meio flui diretamente para dentro da boca de sua cabeça cortada.

Segundo o mito tântrico, a deusa, em sua função de Mãe do Universo, decapitou a si mesma para alimentar seus devotos famintos com seu próprio sangue. Em outras palavras, ela cometeu o autosacrifício máximo de oferecer seu corpo e substância vital – o sangue – em benefício da humanidade. O jato médio de sangue que verte de seu pescoço e entra em sua própria boca é um sinal de que a deusa não cometeu um suicí dio convencional. O seu autosacrifício não nega a vida, mas a intensifica. O jorro central de sangue que sai de seu corpo decapitado corresponde ao fluxo de energia psicoespiritual (kuṇḍalinī) ao longo do “gentil” canal central do corpo (suṣumnā-nāḍī). As duas torrentes de sangue, a direita e esquerda, representam, respecticamente, piṅgalā e iḍā-nāḍī. Esse simbolismo e seu processo subjacente são fundamentais para o Yoga Tântrico. Quando a energia psicoespiritual sobe pelo canal central a partir da base da coluna vertebral (mūlādhāra-cakra) até a coroa craniana (sahasrāra-cakra), ela não apenas revitaliza cada célula, mas também ajuda o praticante tântrico a transcender e transmutar o corpo em um veículo “divino”.

A imagem de Chinnamastā sugere que ela possui infinita vitalidade, e aqueles que imitam seu autosacrifício por meio das práticas de Yoga também ganham acesso a uma energia incomensurável: a energia do próprio Espírito. Muitas vezes Chinnamastā é retratada com um casal copulando. O homem em posição inclinada (viparita-rātī) é Kāmadeva, o deus do amor e da paixão, e a mulher sentada sobre ele é Rātī, a deusa do prazer. Esta exuberante imagem tântrica contém um triplo significado. Primeiro, o ato de autosacrifício de Chinnamastā transcende a sexualidade e o mero prazer. Segundo, o trabalho tântrico de autotransformação é baseado na energia psicosexual. Ao invés de reprimir o instito sexual, os adeptos tântricos o utilizam para aumentar a vitalidade do corpo, que então proporciona a energia necessária para transcender o corpo (e a sexualidade) como um todo. Terceiro, a cabeça cortada de Chinnamastā representa a transcendência do complexo ego-personalidade e sua identificação com o corpo físico. Apenas quando superarmos nosso senso inerente de que somos o corpo, ou pelo menos estamos ligados a ele de maneira inextricável, seremos capazes de descobrir a nossa Verdadeira Natureza. A transcendência real da identificação com o corpo envolve o tipo de reestruturação psicoenergética que o Tantra e outras formas de Yoga tornam possível.

A imagem de Chinnamastā representa o triunfo da vida sobre a morte. Ela possui um profundo significado para todo aquele que busca a autotranscendência. Todo ato espiritual, e portanto moral, implica em ir além dos padrões de hábito do ego e em manter uma conexão com todas as formas de vida e com o meio ambiente ao nosso redor. Em todas as atividades, devemos ser o sacrificador e o sacrificado. Somente assim ajudaremos a manter a ordem cósmica, alimentando o restante da criação com nossa energia e boa vontade. Neste momento – preservando aquilo que foi nos legado pelas Upaniṣads –, somos convocados a fazer um “sacrifício humano” na forma de prática espiritual pessoal e consciente: a autotranscendência constante por meio da ação responsável, da gentileza, da compaixão e do cuidado em relação a todos os seres sencientes.

Notas:

1. Há rumores que, ainda hoje, existam rituais de sacrifício em nome da deusa Kālī na Índia. O British Raj, i.e. a soberania britânica na Índia, aboliu este tipo de prática desde 1928, inclusive a autoimolação feminina conhecida como sātī, o ato de se jogar na pira funerária junto ao marido falecido. Mas também há notícias de mulheres tradicionalistas que ascendem sua própria pira antes de serem detidas.

2. Era conhecido que o sangramento de uma pessoa ferida podia levá-la a morte. Essa observação estabeleceu uma associação entre o sangue e o princípio da vida, pois a perda do sangue leva consigo a vida.

3. Desta maneira, os cultos tântricos se desenvolveram a partir de movimentos devocionais associados ao culto das deusas, que aos poucos foi incorporando ritos de celebração da sexualidade.

4. Em uma época posterior, o homem-Deus Kṛṣṇa foi generoso ao dizer que Ele, na condição de Suprema Personalidade de Deus, aceitaria qualquer oferenda, por mais humilde que fosse, contanto que feita com o coração puro.

5. Segundo a documentação existente, a origem do Yoga tem sua gestação na época das primeiras Upaniṣads. Posteriormente essa doutrina teria tomado corpo com a composição do Yogasūtra de Patañjali. As Upaniṣads são um conjunto de obras consideradas pelo hinduísmo como integrantes do corpo literário da revelação (smriti), mas que fogem ao padrão anterior das composições védicas, que se tratavam exclusivamente de assuntos relacionados aos rituais. As Upaniṣads minimizam a importância do ritual em favor de uma descoberta pessoal da perfeição. Seu conteúdo é místico e seus argumentos têm perfil filosófico, tratando fundamentalmente da relação entre o eu e o todo, designado Brahmā. A palavra Yoga aparece pela primeira vez na Śvetāśvatara-Upaniṣad.


0 comentários:

Postar um comentário