quinta-feira, 17 de abril de 2014





Fernando Liguori


ALGUNS meses atrás, eu recebi um e-mail de uma psicóloga, praticante de Yoga, com uma indagação bem inquietante. Antes de respondê-la, recorri a alguns adeptos tântricos de confiança e a alguns médicos ayurvédicos de bastante credibilidade, tanto no Brasil quanto na Índia. Agradeço aos ācārya-s Omkarnāth e Vidyānanda e aos Drs. Remmesh Datu e Sunjib Mukherjee pela confiança, ajuda e a oportunidade de aprendizado.

O que se segue é uma parte do texto enviado pela psicóloga:

> Date: Sat, 2 May 2009 10:39:11 -0300
> Subject: Kundalini e esquizofrenia
> From: julianashanti@...
> To: anuttarakulacarya@hotmail.com

> Oi acharya, desculpe tomar seu tempo. Sou leitora de seu blog e gostaria de lhe fazer uma
> pergunta. [...] Pratico yoga faz cinco anos e sou psicóloga. Atualmente estou atendendo uma
> paciente bipolar com um diagnóstico de paranóia prolongada e esquizofrenia. Recentemente
> ela iniciou um tratamento com shiroddhara para ajudá-la. Além de fazer acupuntura e ter
> uma dieta à base de suplementos nutricionais e ervas, parece que nada tem ajudado. Ela
> pratica meditações e diz que um ambiente calmo, com pouca luz, musicas elevadas e incenso
> ajudam a acalmá-la. Mas algo que me deixa intrigada, são as fortes dores de cabeça, sensação
> de queimação nas costas e nuca. Todo este problema, tanto a mente desfragmentada quanto as
> sensações, seriam um despertar da energia kundalini? Obrigada, Juliana S.

Em minha resposta, me preocupei em traçar um paralelo entre o despertar e a ascensão da kuṇḍalinī (que são coisas distintas) e possíveis desajustes psíquicos provindos desta experiência mística. Mas para fazê-lo eu teria de levar em consideração minhas próprias experiências e as experiências de amigos com um grau mais avançado de prática e realização. Como ela citou um tratamento ayurvédico, procurei também amigos com uma bagagem maior do que a minha na área, o que ampliou meu campo na pesquisa.

De qualquer maneira, devemos compreender que o despertar e a ascensão da kuṇḍalinī sempre ocorrem de forma distinta. Não há uma fórmula exata, e aquele que diz o contrário está enganando ou está sendo enganado. Se fosse o caso, não existiriam tantos métodos diferentes para se obter este tipo de experiência e, quem sabe, realização espiritual. Portanto, em cada um, esta experiência será diferente, não importando o grau de desenvolvimento espiritual em que ele se encontra no momento.

Devemos levar em consideração também a grande massa de pessoas que, pensando estar operando com a kuṇḍalinī śakti, começaram a cavar sua própria cova, atolados em um mar de ignorância e uma fossa de autoengano. Eu já perdi a conta de quantas vezes já escutei a expressão: eu tenho a kuṇḍalinī desperta, tanto ao vivo e a cores, quanto por fóruns na internet, cartas e e-mails. A este respeito eu sempre digo: cuidado! Isso basta. As pessoas que realmente são devotadas a uma espiritualidade pura sem as máculas do complexo ego-personalidade logo desfazem o nó criado pelo ego e se põem em seu lugar. Além de alguns adeptos tântricos de alto calibre moral, eu não conheci ninguém com a kuṇḍalinī śakti plenamente desenvolvida e operando em equilíbrio. As pessoas deveriam se envergonhar em dizer isso!

Ademais, kuṇḍalinī desperta e elevada não é sinônimo de liberdade interior. Ao que tudo indica, a liberdade interior e a benevolência andam de mãos juntas em um mestre autêntico; um mestre liberado que seja mau é simplesmente uma impossibilidade. Sem dúvida, antes de atingir a plena liberação ou iluminação, os adeptos com a kuṇḍalinī em plena operação podem manifestar traços de caráter muito indesejáveis, ou até mesmo psicopatológicos. Nesse sentido, existe o perigo de confiar a própria vida espiritual a um mestre que pode ter todo tipo de realizações e faculdades extraordinárias promovidas pela plena experiência da kuṇḍalinī, dotado até mesmo de características sobrenaturais, mas que ainda não transcendeu a ilusão do ego.

O que se segue foi minha resposta:

Olá Juliana, bom dia.

Namaskār.

Obrigado por sua mensagem e desculpe a demora. Tive de recorrer a alguns amigos e adeptos mais experientes para poder responder seu questionamento de uma forma bem fundamentada. Nós temos de levar em consideração as três doenças mentais que você citou (bipolaridade, paranóia e esquizofrenia) e o que isso tem a ver com a experiência do despertar e da ascensão da kuṇḍalinī, e como este processo ocorre na anatomia sutil.

Vamos começar descartando a bipolaridade. Na Índia, segundo a Āyurveda, a bipolaridade é uma doença mental causada pelo desequilíbrio das três guṇa-s (qualidades da natureza) nos doṣa-s (humores corporais). Resumindo brevemente, quando a mente se encontra em uma predisposição tamásica ocorre a depressão; quando a mente se encontra em uma predisposição rajásica ocorre a mania. Portanto, o tratamento e a possível cura para bipolaridade, segundo a medicina ayurvédica, é uma satvificação do corpo, mente e emoções. Isso se dá através da prática do Yoga, meditação, massagens e o cultivo de um estilo de vida saudável, simples e menos consumista. Alimentação vegetariana, livros e filmes que inspirem a paz, harmonia, felicidade etc.

Assim descartamos a associação entre a bipolaridade e a experiência da kuṇḍalinī, pelo menos nas pesquisas que fiz. Dos médicos ayurvédicos que consultei, nenhum mencionou a bipolaridade como um sintoma desequilibrado da experiência da kuṇḍalinī.

Nas pesquisas que fiz, tanto a esquizofrenia quanto a paranóia podem ser associadas ao fenômeno da kuṇḍalinī. Eu descobri que na Índia inúmeras pessoas que são diagnosticadas com esquizofrenia estão passando por algum tipo de despertar espiritual, muitas vezes associado ao despertar da kuṇḍalinī. Como seus corpos e mentes não estão purificados o suficiente para que esse processo ocorra sem dificuldades, ele é acompanhado por rupturas na psique, causando assim a desfragmentação da substância mental. Um fenômeno que está completamente longe de ser diagnosticado pela medicina ocidental.

O despertar da kuṇḍalinī ocorre de maneira distinta nas pessoas. Eu não posso lhe dar uma cartilha que revele instruções de como se fazer para despertá-la e como lidar com os sintomas promovidos por esta experiência. Contudo, várias tradições tântricas relataram meios, muitos dos quais desenvolvidos por mestres através dos séculos, por onde o adepto poderia despertar e manipular com impunidade esta energia. De acordo com as escrituras e as instruções de alguns ācārya-s experientes, a kuṇḍalinī pode ser desperta por alguns métodos como:

1.    utilização de certas drogas ou gañjā (cannabis);
2.    prática intensa de respiratórios (prāṇāyāma);
3.    dedicação a prática espiritual (sādhanā);
4.    pela graça do guru no processo de transferência da energia espiritual (śaktipāt);
5.    por acidente ou trauma;
6.    espontaneamente.

Da mesma maneira, alguns mestres deixaram registros de suas experiências com a kuṇḍalinī e os sintomas dela derivados:

1.    sensação de uma forte corrente eletrica saindo da base da coluna e subindo até o topo da cabeça;
2.    calor intenso no corpo;
3.    queimaduras podem aparecer na pele, por todo o corpo, sem um motivo aparente;
4.    visões de energias, entidades ou seres que não são visíveis as pessoas comuns;
5.    a escuta de vozes ou zumbidos;
6.    a escuta e percepção de pensamentos e intensões inatas de outras pessoas.

Dentro da coluna vertebral existe um canal de energia ou consciência chamado suṣumnānāḍī. Este canal por onde flui o prāṇa (energia vital) é constiuído por três camadas ou nāḍī-s internos: vajrānāḍī, citrinīnāḍī e brahmanāḍī. Quando a pessoa não se encontra preparada, não segue uma dieta sátvica, não controla seus estímulos sensoriais e mentais, não segue as diretrizes morais e éticas do Yoga (i.e. yama e niyama), não pratica yogāsana-s e meditações regulares, é muito difícil que desperte e ascenda a kuṇḍalinī. Mas pode acontecer. Neste caso, não será com facilidade, e a experiência pode ser difícil e perturbadora. Vamos então trabalhar com esta hipótese:

A kuṇḍalinī irá ascender através da camada mais externa do suṣumnā, o vajrānāḍī, onde todos os tipos de fenômenos psíquicos se manifestarão, incluíndo a audição de vozes e a visão de diferentes tipos de entidades. Isso pode ser altamente perturbador se o corpo e a mente estiverem dominados por rajo ou tamoguṇa, fazendo com que a pessoa apresente características esquizofrênicas.

Se a kuṇḍalinī ascende através do citrinīnāḍī, haverá um número maior de experiências. Os vṛtti-s são alocados nos cakra-s ao longo deste canal. Assim, se a kuṇḍalinī ascende e invade um cakra que não está completamente aberto, sua força pode vazar para fora através de algum vṛtti particular, seja ele medo, raiva, luxúria etc. Quando isso ocorre, o vṛtti em particular torna-se supersaturado, e a pessoa se tornará obsediada, ocorrendo também um aumento gigantesco na propensão do vṛtti supersaturado. Assim, a pessoa pode manifestar características maníacas, paranóicas ou obsessivas.

Quando a pessoa faz um trabalho de preparação espiritual pela prática de yogāsana-s e as demais técnicas do haṭhayoga, faz meditações regulares, segue uma dieta sátvica e procura controlar seus impulsos sensoriais seguindo os preceitos morais e éticos do Yoga, e não havendo nenhum bloqueio no caminho, a kuṇḍalinī então ascende através do brahmanāḍī. Neste caso não haverá nenhuma perturbação, mas várias experiências elevadas na medida em que a kuṇḍalinī atravessa os cakra-s. Por exemplo, quando a kuṇḍalinī perpassa o anāhatacakra a pessoa experimenta um sentimento de conectividade com o Universo, onde tudo é banhado por uma prístina luz dourada de amor divino.

Por favor, veja se sua paciente relatou alguns dos sintomas aqui listados. Esteja a par dos medicamentos que ela está usando e pergunte também se está fazendo práticas espirituais além da meditação e se fez ou está fazendo uso de drogas (químicas ou naturais). Perceba seu problema de forma bem holística. Procure saber se todas estas informações recolhidas estão associadas também ao seu passado. No caso das drogas, indague se há uma utilização permanente ou é algo que ocorre somente às vezes. Isso tudo tem de ser levado em consideração para um diagnóstico preciso sobre os efeitos da kuṇḍalinī.

Se você tiver certeza que os efeitos que ela está apresentando estão associados à experiência da kuṇḍalinī, leve-a a um autêntico e experiente guru, svāmi ou ācārya que poderá conduzí-la ao dikṣa (iniciação), orientando-a e guiando-a com sua experiência através das práticas espirituais. Sob os auspícios de um professor fidedigno ela não terá dificuldades.

De qualquer maneira, leite e ghee, trabalho com a terra (p.e. jardinagem) e a prática de exercícios físicos (p.e. corridas e caminhadas) farão com que ela fique mais equilibrada. Ela precisa de uma prática regular de āsana-s e uma alimentação sátvica. Posteriormente, e somente então, quando sua mente estiver mais equilibrada, uma prática pessoal de meditação. A utilização de muitas ervas apontadas pela Āyurveda como p.e. a ashva-gandha podem ajudar muito.


Abraços.

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