terça-feira, 3 de junho de 2014




Fernando Liguori


Este é o primeiro de uma série de textos acerca dos aspectos ocultos ou desconhecidos da disciplina yogī. Muitos desses aspectos estão «ocultos» ou são «desconhecidos» pela grande maioria dos praticantes iniciantes ou aqueles que estão começando a manter um sādhanā contínuo e ininterrupto. Como são ensinamentos esotéricos contidos nas upaniṣads, estes «aspectos ocultos» estão presentes na vida dos saṃnyāsins, adeptos iniciados na tradição saṃnyāsa. Nestes textos vamos embarcar em uma viagem em direção às origens, tradições e essência deste caminho, fornecendo informações seguras para que ele se torne um estilo de vida prático. Este texto é também a continuação dos estudos sobre as técnicas de Yoga ensinadas por Mahāṛṣi Gheraṇḍa ao seu aluno, o rei Caṇḍakāpāli na Gheraṇḍa-saṃhitā. Grupo de Estudos Kaula, 2014.


Existem aspectos da disciplina yogī que são desconhecidos por muitos praticantes, principalmente os principiantes. Comumente, estes aspectos somente são compreendidos e assimilados na medida em que progredimos no caminho do Yoga. Quando falamos em sādhanā «prática espiritual», muitas vezes nos vem à mente o aṣṭāṅga-yoga delineado por Patañjali no Yogasūtra – e que está presente desde tempos imemoriais na literatura védica, tântrica e também nas upaniṣads[1] –, o sapta-sādhanā de Mahāṛṣi Gheraṇḍa ou os ensinamentos de Śrī Svātmārāma Yogīndra na Haṭha-pradīpikā. Contudo, o sādhanā, seja ele baseado em Patañjali, Gorakṣa, Gheraṇḍa ou Svātmārāma, não está completo sem o cultivo e a prática de outros «aṅgas», outros aspectos da disciplina. Portanto, neste texto vamos discutir estes aspectos desconhecidos da prática, no entanto valiosos em demasia para o progresso em direção à liberação. Estes aspectos ou «práticas de yoga» foram citados em diferentes upaniṣads e são considerados os responsáveis pelo despertar da consciência espiritual. Iremos começar nossa jornada pelo nono śloka da Gheraṇḍa-saṃhitā, seguindo para os outros aspectos ocultos do sādhanā, revelados em varias upaniṣads.

Gheraṇḍa diz a Caṇḍakāpāli que para haver progresso no ghaṭastha-yoga,[2] é necessário que o estudante tenha sete «qualidades» e para isso tem de empreender sete práticas. Ele diz: śodhanam dṛdhatā caiva sthairyam dhairyam ca lāghavam, pratyākṣam ca nirliptam ca ghaṭasya saptasādhanam,[3] i.e. «As sete disciplinas para o adestramento do corpo são: purificação, firmeza, estabilidade, paciência, leveza, percepção direta e isolamento.» Sem essas qualidades é impossível dar continuidade a prática do ghaṭastha-yoga. Então temos:

Śodhonam «purificação»

A fim de manter o corpo e a mente livre de doenças, desordens e desequilíbrios, é essencial que o estudante empreenda esforço «tapaḥ» em purificar todos os aspectos de sua psique. O Yoga possui inúmeros procedimentos de purificação para o corpo, a mente, as emoções etc.

Dṛdhatā «firmeza»

Dṛdhatā significa firmeza, constância, perseverança. Alguns traduzem a palavra como força, energia, outros preferem traduzir como força mental ou firmeza da mente. O propósito pelo qual a palavra foi utilizada aqui não é apenas físico, mas mental, intelectual e emocional também.

Considere, por um minuto, as inúmeras tentativas que fazemos durante a prática para tornar o corpo forte e firme, os esforços que fazemos para tornar claro e lúcido o processo do pensamento. Com firmeza e o poder de uma resolução «saṅkalpa» pessoal, é possível tornar a vida um local harmonioso e equilibrado. Assim, o sábio Gheraṇḍa ensina que é importante conquistar a qualidade da firmeza a fim de purificar o Ser, na intenção de se manter paciente na prática até que o resultado se mostre estável. Aqui, dṛdhatā significa se movimentar junto ao saṅkalpa, adotando a resolução e permanecendo firme nela.

Sthairyam «estabilidade»

A terceira qualidade a ser desenvolvida é sthairyam, que significa estabilidade. No Yogasūtra (II:46), Patañjali descreve a estabilidade referindo-se ao corpo. Ele disse: sthirasukhamāsanam,[4] que quer dizer «postura fácil e confortável». Durante a prática de āsanas, devemos assumir uma postura estável. Não somente a postura do corpo, mas principalmente uma postura de estabilidade interior. Não deve haver dificuldade, tensão ou dor. As posturas do corpo devem ser feitas de maneira bem relaxada. Isso facilita o āsana-pratyāhāra, quer dizer, a prática de posturas de Yoga que lhe conduza a um estado de pratyāhāra,[5] o que só acontece quando o corpo está confortável e estável, sem dor ou tensão. O mesmo objetivo é referido aqui por Gheraṇḍa. É essencial que o corpo adquira estabilidade, pois se ele permanecer inquieto e agitado não permitirá que a mente se torne centrada, unidirecionada. Estabilidade é apontada aqui como uma qualidade ou necessidade. Como atingir este estado de estabilidade é explicado posteriormente por Gheraṇḍa.

Dhairyam «paciência»

A quarta qualidade é dhairyam, que significa paciência, mas também calma. Dhairyam é o que nos torna «não afetados» pelas situações, permanecendo pacientes e tolerantes, evitando a angústia e a tensão. É uma qualidade mental, pois é a mente, não o corpo, que perde a paciência.

Lāghavam «leveza»

A quinta qualidade ou «necessidade» é lāghavam, que significa leveza, mas também clareza, luminosidade e suavidade. No contexto da vida e das qualidades necessárias para o Yoga, o corpo do yogī deve permanecer leve; não deve ser pesado ou gordo. Um corpo gordo e pesado é inadequado para o Yoga porque se acredita que o excesso de peso é a causa de muitas doenças. Isso não significa, contudo, que pessoas sobrepeso não possam se tornar yogīs.

O sobrepeso é causado pela comilança descontrolada, que provoca o acúmulo de desordens no corpo. De acordo com a ciência médica, existe um estado corporal saudável. Quando ocorre um desequilíbrio e o estado corporal saudável perde-se, então surgem as desordens. Começam a aparecer problemas no sangue, perda de tônus muscular e massa magra, os ligamentos ficam fracos etc. O corpo desenvolve doenças das mais variadas. O excesso de peso causa desconforto nas juntas, problemas cardíacos ou pressão alta. Na medida em que essas condições se acumulam, a pessoa se torna suscetível a outras mazelas como úlcera ou hérnia. Portanto, para um praticante de Yoga é essencial ter o corpo leve no início, do contrário o Yoga não será aperfeiçoado.

Uma vez que o Yoga seja aperfeiçoado e o praticante vai além da experiência do corpo, não é preciso se preocupar em demasia com o estado físico. Na realidade, quando a energia prânica desperta,[6] ela se concentra no maṇipūra-cakra e o abdômen cresce. Estes yogīs dificilmente comem comidas pesadas. Muitos se alimentam só de frutos. Em tais yogīs a expansão do maṇipūra-cakra é o despertar do prāṇa, não uma desordem no corpo. Portanto, deve ser observado que muitos santos e yogīs realizados têm a barriga grande. Contudo, nos estágios iniciais da prática, o corpo deve ser magro.

Pratyākṣam «percepção direta»

Pratyākṣam[7] é a sexta qualidade. A palavra significa percepção direta, aceitação ou realização. É a natureza da aceitação interior, quer dizer, seja lá qual for à experiência sutil ou interna, deve haver sempre clareza ou percepção direta diante da experiência. Pratyākṣam vem de prati, um prefixo que indica oposição ou confronto a palavra que o precede. Ākṣam significa olhos, visão ou ver.

Não podemos confundir o estado de pratyākṣam com o estado de laya «dissolução», onde não é possível ver nada. Também não é um estado de experiência sensual. Ao contrário, é o estado onde é possível ver com clareza a experiência interna ao mesmo tempo em que se mantém estável em si mesmo, no seu próprio eixo.

Vamos tomar um exemplo da vida. Em Minas Gerais, onde vivo, existe um doce chamado banana flambada. É a mistura da banana, queijo e calda melada de banana ao fogo. Feche os olhos e imagine que você está colocando na boca esse doce. Experiencie o sabor enquanto come o doce. O gosto do queijo, da banana e da calda irão desaparecer e só um gosto permanecerá, que não é nenhum dos três. Com a experiência desse sabor você vai dizer: «que delícia». A «delícia» não se refere ao queijo, à banana ou a calda, mas a um quarto sabor formado a partir da combinação desses outros três sabores. É sutil, não pode ser visto. Algo que não é experienciado com a banana, queijo ou calda, mas está presente. A percepção direta dessa experiência na estabilidade interior é pratyākṣam.

Nirliptam «isolamento»

A sétima qualidade é nirliptam. Muitas pessoas usam essa palavra como um equivalente para samādhi, mas em essência, nirliptam é um estado de desinteresse, desapego e «não envolvimento» da mente, portanto, isolamento. Estar envolvido é o que acontece com uma mosca que voa e afunda profundamente suas asas em um pote de açúcar. Ela se torna incapaz de sair dali voando. Nirliptam é quando a mente não se envolve. Até que essa qualidade seja conquistada, o buscador continua apegado à vida, ao corpo, aos pensamentos, as emoções, paixões e desordens. É preciso ir além desses apegos para tornar-se estabilizado no processo do auto-conhecimento, livre da força gravitacional que nos atrai ao mundo.






[1] De acordo com a tradição, as ferramentas de prática «aṣṭāṅga-yoga» que Patañjali delineou em sua obra já existiam muito antes de sua compilação e estão presentes em qualquer prática de Yoga, em maior ou menor grau. Existe a tendência de se atribuir a Patañjali ou sua escola a criação do aṣṭāṅga-yoga. Isso não é verdade. O aṣṭāṅga-yoga está presente em muitos sistemas, dos Vedas ao Tantra, muito antes de Patañjali.
[2] Veja o artigo Conhecimento vsIlusão & Yoga vs Ego, do mesmo autor.
[3] शोधनम् दृधता चैव स्थैर्यम् धैर्यम् लाघवम्।
प्रत्याक्षम् निर्लिप्तम् घटस्य सप्तसाधनम्॥, G.S. I:9.
[4] स्थिरसुखमासनम्, YS II:46.
[5] Veja o artigo Estágios dePratyāhāra, do mesmo autor.
[6] Veja o artigo Prāṇotthana ou Kuṇḍalinī, de Swāmi Santaram Saraswatī.
[7] Não confundir com pratyākṣam do sistema Sāṃkhya.

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