quarta-feira, 2 de julho de 2014




Fernando Liguori


A série de artigos «Vida de Yoga» está sendo escrita para responder inúmeras perguntas enviadas pelos leitores do blog Yoga Dṛṣṭi. Temas como o propósito do Yoga na vida, a integração de suas práticas no dia-a-dia de forma equilibrada para que atuem na mente, corpo e espírito, a relação entre o guru e o discípulo, sādhanā, disciplina e estilo de vida yogī etc. Nessa direção, o Yoga Dṛṣṭi apresenta o Yoga na forma de uma medicina sagrada, um remédio em cápsulas a ser tomado todos os dias. Para nós, Yoga é prática, Yoga é sādhanā, Yoga é estilo de vida, Yoga é cultura.


O tema de hoje é sobre a aplicação das práticas de Yoga na rotina da vida diária. Quando o aluno vem à procura do Yoga, uma das primeiras orientações que lhe damos é que a prática deve não apenas incluir o tempo que estamos sobre o tapetinho ou manta utilizada nas sessões de āsana, prāṇāyāma etc., mas a vida como um todo. O Yoga não se define pela prática que executamos sobre o tapetinho. Na verdade, não podemos nem chamar isso de Yoga pois não são essas práticas que definem o que o Yoga é. As práticas e os princípios do Yoga devem fazer parte do dia-a-dia, por tempo integral. Contudo, muitas pessoas se sentem desencorajadas a praticar tudo aquilo que aprenderam nas aulas em casa, no curso do dia.

É normal os alunos pensarem: «como vou incluir duas horas de prática de yoga no meu horário?» A partir disso, inúmeras coisas passam pela cabeça: «tenho de acordar bem cedo para praticar yoga, mas para isso tenho de mudar meu estilo de vida, tenho de mudar meus padrões, tenho de mudar isso, tenho de mudar aquilo.» Isso cria uma contenda interna e o resultado é um estado de confusão mental muito grande. Existem alunos que seguem a risca o que aprendem na aula, executando suas práticas uma ou duas horas por dia. Contudo, com o tempo a inspiração e a motivação diminuem, outros fatores e situações começam invadir o horário das práticas e talvez após alguns meses ou semanas, quem sabe um ano, o sādhanā é interrompido.

O Yoga não deve ser praticado dessa maneira! Na aula o aluno aprende o quanto pode ou o quanto o professor ensina, mas em casa não é possível praticar tudo o que o professor ensina, a não ser que o aluno seja avançado. O importante não é tentar praticar tudo o que o professor ensina na aula de uma vez só, mas ao contrário, deve-se tentar integrar o que se aprendeu no dia-a-dia, como um remédio em cápsulas que vai sendo administrado ao longo do dia, na medida em que o tempo permite e quando o estado de espírito for apropriado. A mente deve estar em uma condição correta para que o máximo benefício seja extraído da prática. As práticas que o Yoga oferece para o aperfeiçoamento interior devem ser administradas com discernimento. Muitos alunos, inclusive alunos de outros professores também, já me perguntaram: «eu pratico yoga-nidrā todos os dias após meu sādhanā, bem cedo quando acordo, está correto?» Eu sempre digo a mesma coisa: é correto praticar yoga-nidrā após o curso do sādhanā, mas é uma prática inapropriada para ser feita de dia. Portanto, com a orientação correta, cada praticante vai ajustando individualmente sua prática, segundo suas possibilidades, ânimo e natureza interior. Assim, veja o que é possível praticar diariamente, semanalmente, mensalmente e anualmente. Dessa maneira é possível construir um ano de programa de práticas. Naturalmente, após um ano de execução ininterrupta do sādhanā, o programa pode mudar e é possível acompanhar o progresso e o avanço aos estágios mais profundos do Yoga.

Mas como esse programa diário pode começar? Quais são os pequenos períodos do dia em que é possível executar alguma prática de Yoga e superar as condições e estados em que o corpo, a mente e as emoções estão enfrentando devido a sua interação com o mundo exterior?

Sādhanā mântrico matinal

A rotina do dia deve começar com o mantra-sādhanā.[1] A primeira coisa a ser feita ao acordar é a entoação do mahāmṛtyuñjāyā-mantra onze vezes, o gāyatrī-mantra onze vezes e o durgā-mantra três vezes. Mas porque o programa diário deve começar com a entoação desses mantras? Pela manha o cérebro está relaxado por conta do período que ficou em descanso. A mente, por não ter tido contato com os dramas do dia-a-dia, está calma e tranquila, em paz e relaxada.

A prática é feita dessa maneira: assim que acordar, antes de sair da cama, assuma uma postura meditativa, de maneira que seu corpo possa estar relaxado, ao mesmo tempo em que imóvel e bem confortável. Ao assumir a postura você notará uma leve sonolência, um estado onde você não se encontra completamente desperto. Nesse estado entre o sono e a vigília, sonolento, o subconsciente está ativo.

De um lado nós temos o estado de vigília, cuja faculdade consciente está completamente integrada e envolvida com as experiências sensoriais. Do outro lado nós temos o inconsciente, cuja faculdade inconsciente está completamente desconectada das experiências sensoriais. O subconsciente está no meio, atuando como um elo de conexão entre o estado de vigília ou consciência e o inconsciente profundo, como a fonte onde a mente pode ser fortalecida e energizada, a criatividade pode ser desenvolvida e a positividade adquirida. É o subconsciente que deve ser protegido das influências que vêm do exterior, assim como das tendências negativas e destrutivas que brotam do interior.

De acordo com a filosofia yogī, o subconsciente é o assento e a fonte da energia mental. É no subconsciente que o poder da vontade é fortemente desenvolvido. Utilizar a mente subconsciente pode modificar e alterar os padrões de comportamento e pensamento. A mente consciente do estado de vigília é redundante porque sua percepção é unilateral: existe a pessoa e o mundo e nada mais. Essa conexão unilateral não permite que o poder da vontade se desenvolva. A vida apresenta inúmeras ocasiões onde podemos fazer afirmações positivas ou resoluções «saṅkalpa» a fim de se conquistar algo ou atingir metas. O ano novo, por exemplo, é uma dessas ocasiões onde muitas pessoas fazem planos para o ano que irá começar. Elas dizem: «A partir de primeiro de janeiro vou levar a cabo meu saṅkalpa durante todo o ano.» Tenho certeza absoluta que você leitor já passou por uma situação assim. A pergunta que tenho a fazer então é: você foi capaz de sustentar sua resolução por todo o ano? Talvez uma semana ou quinze dias, no máximo um mês. Mas em fevereiro você retorna aos velhos padrões de comportamento, aos velhos hábitos tóxicos e viciados. Isso indica que a conexão que existe entre você, o meio ao seu redor e o mundo externo como um todo dissipa as faculdades e drena as energias da mente, não permitindo que o seu saṅkalpa, afirmação ou resolução germine e cresça, pois a mente está distraída e dissipada. Assim, a mente consciente do estado de vigília é redundante porque apenas interage com o mundo dos sentidos. Ela não nos inspira a desenvolver uma qualidade mais sutil de vida. Da mesma maneira, a mente inconsciente também é redundante, pois não temos acesso a ela e quando temos, estamos dormindo, impossibilitando o trabalho com seus aspectos sutis. Contudo, nós temos acesso ao subconsciente. O estado de sonolência que experimentamos ao acordar pela manha é o subconsciente no qual os sentidos não estão completamente absortos, envolvidos ou em atividade com o mundo exterior e nem estamos desconectados completamente dele, como no sonho sem sonho, por exemplo. Nessa hora nos encontramos entre o consciente e o inconsciente.

O subconsciente tem um poder transformador. Eu comecei a fazer alguns experimentos com meu filho, na ocasião em que veio passar suas férias comigo. Como ele ainda é muito novo e fico bastante tempo sem vê-lo, costumamos dormir juntos. Nessa ocasião, seu sono estava agitado e ele se debatia muito na cama, acabando por me acertar alguns socos e pontapés. Na manha seguinte eu perguntei a ele: «Filho, por que você fica chutando tanto a noite, enquanto está dormindo?» Ele não soube me responder por que nem sabia que chutava tanto durante o sono. Assim, a fim de acessar a mente subconsciente dele, iniciei alguns experimentos com a yoga-nidrā plantando sementes sem que ele pudesse perceber. A condução do experimento se dava assim: cinco a dez minutos após ele cair no sono, eu o sacudia gentilmente para que ele pudesse abrir os olhos e fechar novamente. Nesse estado eu sabia que ele se encontrava com o subconsciente aberto, pois estava entre o estado de vigília e o sono profundo. Nesse momento, comecei a plantar cinco saṅkalpas, repetindo cada um quinze vezes. Conduzi o experimento no curso de duas semanas. No final da primeira semana ele já estava dormindo tranquilamente e não mais transpirava em excesso. O mais impressionante, durante o dia ele começou a estar mais atento e pacífico e a noite, procurou dormir mais cedo por si mesmo, o que não acontecia antes.

Swāmi Niranjan conta que aos onze anos de idade pode experimentar por si mesmo o poder do subconsciente. Nessa idade, Swāmi Satyānanda, seu guru, o enviou a Inglaterra para que pudesse proferir uma palestra para um grupo de médicos. Ele conta que na noite anterior, durante o sono, teve um sonho onde todo o conteúdo da palestra lhe foi revelado. Ao acordar nem precisou tomar nota, tudo estava fresco e claro em sua memória. Na hora da preleção, pode dizer palavra por palavra, sentença por sentença, do início ao fim. No fim os médicos se reuniram ao seu redor e indagaram: «Onde você estudou?» Ele respondeu: «Eu não estudei!» Assustados, continuaram a indagar: «Mas quem lhe ensinou todas essas coisas que acabou de falar?» Novamente, ele respondeu: «Ninguém!» Continuando, eles disseram: «Mas você sabe exatamente sobre o que falou? Você falou sobre biofeedback, uma ciência que começou a se desenvolver só agora.» Swāmi Niranjan diz que falou sobre RGP «Resposta Galvânica da Pele», sobre os efeitos dos āsanas e prāṇāyāmas nas funções cardíacas e como esses efeitos poderiam ser observados através de eletrocardiograma, falou também sobre os efeitos da meditação no cérebro e como esses efeitos poderiam ser monitorados através de eletroencefalograma e através da observação das ondas alfa, beta, theta e delta. Ou seja, Swāmijī proferiu uma palestra inteiramente científica.

Em um satsanga Swāmijī comentou que naquela ocasião chegou a pensar: «De onde veio esse conhecimento que até ontem eu não tinha?» Ao fazer essa pergunta ao seu guru, Swāmi Satyānanda abriu um leve sorriso e respondeu: «Isso é só o começo. Muitas coisas ainda virão à tona na superfície de sua mente.» Swāmi Niranjan só pode experimentar o poder do subconsciente porque seu guru lhe plantou inúmeras sementes. Como ele não costumava ir a escola, Swāmi Satyānanda, através da yoga-nidrā, lhe ensinou a Bhagavadgītā, matemática, história, geografia, física, química, literatura, as upaniṣads, os vedas e os tantras. Quando seu guru lhe dava algum livro sobre esses temas para que pudesse estudar ele pensava: «Eu conheço esse assunto. Já li sobre isso em algum lugar.» Com isso, ele conseguia compreender o tema com muito mais facilidade. Esse é o efeito da yoga-nidrā.

A yoga-nidrā atua na mente subconsciente. Na prática é possível experimentar um estado onde não estamos dormindo ou despertos. A sensação é de que estamos conscientes o tempo todo, mas não é possível recordar as instruções do professor do início ao fim da prática. Isso significa que as instruções foram direto ao subconsciente. É como se elas contornassem a mente consciente entrando direto no subconsciente. Se elas tivessem passado pela mente consciente seria possível lembrar as palavras do professor: «mantenha consciência total da perna direita e de todas as sensações que ela experimenta» ou qualquer outra visualização que ele estivesse ensinando. Contudo, não existe consciência de suas instruções ou do estado de sono, embora não estivéssemos dormindo.

Quando acordamos pela manha o subconsciente está ativo. Esse é o momento correto para fazer as três resoluções «saṅkalpas» dos mantras. Essas três resoluções são como sementes que plantamos no chão e ali esquecemos para que possam germinar naturalmente. Portanto, após plantar o saṅkalpa é necessário esquecê-lo.

Quando jogamos uma semente no chão devemos deixá-la para que a natureza siga seu curso. Se plantarmos uma semente no solo e todos os dias reviramos a terra para ver se brotou, não daremos a chance para que ela germine e cresça. É necessário esquecê-la ali para que naturalmente possa germinar. Essa é a ideia por trás do saṅkalpa ou pensamento positivo: deve-se formulá-lo e plantá-lo no subconsciente e em seguida esquecê-lo. Este é o propósito do mantra-sādhana pela manha. Este é um horário importante porque o subconsciente está completamente ativo. As ondas alfa estão predominantes na mente e a primeira impressão que entra determina sua condição e estado para o resto do dia. Se os mantras são entoados após o banho eles não terão serventia. As sensações, sentimentos, emoções e crenças se precipitam na superfície da mente e fazem um grande mexido dentro dela.

A maioria das pessoas acorda pela manha com o despertar do relógio. O primeiro som que escutam é o alarme e por conta disso todo o seu dia é comprometido por um zumbido interior que vibra na mente, consciente ou não. No domingo, para quebrar o condicionamento semanal, as pessoas preferem acordar tarde, tomar café na cama e ler o jornal. É como se a pessoa continuamente jogasse pedras em um lago causando pequenas ondas, deixando a mente em um estado de tormenta perpétua. Entoar os mantras enquanto o subconsciente ainda está ativo permite que a mente sustente um estado pacífico. Antes que a mente se torne ativa e suas energias dissipadas deve-se plantar os saṅkalpas dos mantras. Mas quais são esses saṅkalpas?

O primeiro é para saúde e bem-estar. Faça um saṅkalpa para aquisição de saúde física, mental, emocional e espiritual. Por exemplo: «eu sou saudável, próspero e sábio» e em seguida entoe o mahāmṛtyuñjāyā-mantra onze vezes, sentado em uma postura meditativa na cama, de forma que o som seja sussurrante. Essa é a fórmula: ao acordar e assumir uma postura meditativa, fechar os olhos, formular o saṅkalpa e entoar o mantra.

Ao finalizar a entoação do mahāmṛtyuñjāyā-mantra, faça outro saṅkalpa para aquisição de sabedoria e entendimento. Qualquer pessoa pode obter conhecimento, mas poucos adquirem sabedoria e entendimento, duas qualidades fundamentais na vida. Não a habilidade de saber ou criatividade intelectual, mas a habilidade de entender. Após o saṅkalpa entoe o gāyatrī-mantra onze vezes.

Quando completar a entoação do gāyatrī-mantra, faça outro saṅkalpa para aquisição de força interior para enfrentar o mundo com positividade e otimismo e superar as angústias e as doenças: a angústia da mente e a doença do corpo. Após o saṅkalpa entoe três vezes os trinta e dois nomes de Durgā.

Com proficiência, essa prática dura no máximo sete minutos. Após a entoação dos mantras o dia começa. Se levante, faça seus procedimentos de limpeza e purificação, se vista e prepare-se para enfrentar o dia.

Aqueles que executam este mantra-sādhanā pela manha permanecem otimistas, positivos, criativos e lúcidos durante todo o dia. Os mantras revigoram a mente e atuam como um escudo protetor contra influências negativas. Eles mantêm a mente focada diante das preocupações, aflições e problemas do dia-a-dia. Portanto, essa é a medicina número um: entoe os três mantras como sādhanā diário, sempre pela manha, ao acordar. Essa é a primeira cápsula do remédio prescrito pelo Dr. Yoga que se toma no dia.




[1] Veja os artigos Mantra Yoga e Mantramālā do mesmo autor. Veja também o artigo Cura, Sabedoria & Paz de Swāmi Niranjanānanda Saraswatī.

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