sábado, 22 de março de 2014



Swāmi Satyānanda Saraswatī


Texto retirado do livro Meditations From the Tantras, Yoga Publications Trust, 2004.


Embora o Yoga esteja mais preocupado com a prática do que com a teoria, a ideia básica dos aspectos filosóficos ajudará o praticante a saber o que ele está tentando fazer e como atingir estados meditativos avançados. O leitor verá que a filosofia do Yoga, embora contenha grandes insights, está sempre concernida em como o meditador poderá proceder para conquistar a autorrealização. Muitas filosofias, principalmente as variadas filosofias ocidentais, têm a tendência de se perderem em suas próprias palavras. Elas querem fazer com que suas concepções se ajustem as circunstâncias, pintando uma imagem agradável da realidade. Os filósofos se tornaram tão apegados a suas palavras que eles fazem delas uma imagem exata e representativa a verdade. Eles não vão a frente na concepção de que suas teorias não passam de um modelo de universo, da mesma maneira que a planta de uma construção somente é a planta da construção, mas não a construção em si. As filosofias orientais, particularmente o Yoga, o Budismo etc., aceitam a ineficácia de suas ideias e tentam demonstrar ao praticante como realizar a verdade por meio de seus próprios esforços. Elas concordam que o entendimento verbal ou escrito da imagem da realidade não expressa à verdade em si. A filosofia do Yoga aplica isso todo o tempo. O Yoga não está destinado às pessoas que gostam de brincar com arranjos de palavras, mas sim aos práticos.

A primeira necessidade de uma filosofia útil é que ela deve se adequar a vida humana. Ela deve formular ideias ou tentar jogar alguma luz sobre a condição humana e como fazer com que a humanidade transcenda o sofrimento e a dor. Buda fez isso, se recusando em responder indagações acerca da natureza de Deus, não porque ele não tinha opinião, mas porque ele não considerou a questão relevante a condição humana. Ele poderia ter respondido: sim, Deus existe ou não, Ele não existe. Em todo caso seus discípulos não iriam ganhar nada com a resposta. Elas teriam sido apenas palavras e por conta disso não causariam nenhuma mudança no interior deles. O objetivo principal de Buda era ajudar as pessoas a transcender o sofrimento da condição humana; na medita em que o ser humano transcende sua condição, as respostas as suas perguntas brotam de seu interior como se não houvesse a necessidade de se fazer tais indagações.

Os kleśas

Como no Budismo, podemos dizer que um dos objetivos do Yoga também é diminuir ou aplacar o sofrimento do homem para que seus aspectos espirituais revelem-se por si mesmos. O Yoga especifica que existem causas definidas para a dor e o sofrimento humano. Essas causas foram classificadas e nomeadas de kleśas e são cinco ao todo. Elas não se baseiam em teorias obscuras, mas através do estudo cuidadoso e prático da natureza humana. Estes cinco kleśas ou aflições foram postulados por sábios que os experimentaram e os transcenderam; portanto, eles eram capazes de ver o todo e não apenas as partes. Ao contrário deles, somos tão prisioneiros das circunstâncias que nos causam infelicidades que não conseguimos ter a mesma visão do todo e assim não percebemos a inteireza de nossa consciência. O sofrimento humano é causado por:

1.    Avidyā (ignorância, falta de conhecimento espiritual, inconsciência da realidade);
2.    Asmitā (o ego);
3.    Rāga (apego);
4.    Dveṣa (rejeição, repulsão);
5.    Abhiniveśaḥ (desejo de fazer parte, medo da morte, apego a vida).

Os kleśas não podem ser vistos como entidades separadas: um sempre leva ao próximo. A ignorância (avidyā) é a raiz de todas as aflições. Por conta disso, cada indivíduo pensa apenas em si mesmo. Ele se torna consciente de sua identidade, de seu ego (asmitā) e automaticamente se sente diferente das outras pessoas e objetos que o cercam. Ele se torna o ego se movendo entre as pessoas e objetos. De forma grosseira ou sutil, tudo o que está ao seu redor se torna subserviente a ele, a fim de trazer mais conforto, felicidade etc. Dessa maneira, os gostos (rāga) e desgostos (dveṣa) nascem. Ele é atraído pelas pessoas que o fazem se sentir bem, feliz, que inflamam o seu ego. Já as pessoas ou situações que lhe fazem sentir-se triste, infeliz, desconfortável etc., tornam-se objetos de repulsão, desgosto. Algumas situações ou pessoas trazem tanto a sensação de gostos e desgostos em circunstâncias distintas; outras vezes, não existe nenhuma das sensações, pois os objetos podem ser neutros. Mas nas devidas condições, contudo, até as situações ou pessoas neutras podem se tornar facilmente em objetos de apego ou repulsa. Do apego aos objetos e pessoas nasce o apego profundo a vida – ou as circunstâncias, ao grupo – e a aversão obsessiva a morte. O indivíduo não quer perder a sua identidade ou os eventos ou pessoas que alimentam o seu ego. Desejando fazer parte do grupo, perde sua verdadeira identidade.

Os kleśas causam sofrimento porque fazem com que o indivíduo se esqueça de si mesmo e se identifique com os objetos, pessoas ou eventos transitórios da vida. O indivíduo se identifica com o corpo, com a mente, com o ego e por conta disso, consciente ou não do fato, sempre está em um estado de infelicidade porque sabe que tudo isso desaparecerá no momento da morte. Ele não se identifica com o Ser interior. É o mesmo com os objetos que lhe agradam: eles não são permanentes e irão desaparecer com o tempo. Eles não mais lhe trarão satisfação. E quanto aos desgostos? Bem, é claro que eles causam uma infelicidade superficial, mas não alimentam o ego com os prazeres do homem. Só que os desgostos não são diferentes dos gostos, são apenas lados opostos de uma mesma moeda. Estamos acorrentados tanto pelos gostos quanto pelos desgostos. Talvez haja alguma verdade no ditado que diz: o seu maior amor é o seu maior desamor. A pessoa que odiamos pode facilmente, sob as devidas circunstâncias, se tornar a pessoa que amamos.

Os kleśas continuamente causam dor e sofrimento porque o homem tenta proteger sua presente condição. É apegado demais ao carro novo. Alguém o rouba e fica triste e deprimido. Alguém lhe diz que seu trabalho não é bom o suficiente e por conta disso fica infeliz porque o seu trabalho é uma extensão sua, parte de seu ego. E isso é assim em todas as coisas da vida. Se o leitor refletir sobre todas as coisas que faz e na dimensão de sua infelicidade, seja ela permanente ou temporária, concluirá que os cinco kleśas cobrem toda extensão do sofrimento humano.

A palavra vāsanā literalmente significa perfume, mas também pode ser traduzida como desejo. Vāsanās são os desejos que nos atraem aos objetos ao nosso redor para que possam ser satisfeitos. Se analisarmos com cautela todas as nossas atividades físicas e mentais, concluiremos que elas são influenciadas ou estimuladas pelos desejos, de uma forma ou outra, às vezes sutilmente, às vezes de forma grosseira. São os impulsos por trás de cada pensamento e ação humana. Isso significa que a mente e o corpo sempre caminham na direção em que os desejos latentes do indivíduo possam ser satisfeitos. Nesse caminho, a consciência que ilumina a mente também se encontra completamente emaranhada, forçada a seguir a incessante busca pela satisfação dos desejos. Os desejos não podem ser satisfeitos todos ao mesmo tempo e se apresentam quando a oportunidade apropriada aparece.

Quais são as causas destes desejos? A causa são os kleśas. Se não existir os kleśas não há desejos. É a atração e repulsão aos objetos, o sentido egoidade, o apego à vida e a ignorância da realidade que causa todos os desejos. Como esses desejos adversos influenciam a prática meditativa? Eles insistentemente distraem a mente do objeto de meditação. Eles tentam fazer com que a mente vagueia aqui e ali, prendendo-se aos eventos externos que precisam ser satisfeitos. Uma mente desfocada é incapaz de se concentrar e portanto, incapaz de meditar.

É impossível remover os kleśas completamente até que a autorrealização seja conquistada. O melhor que se pode fazer é gradativamente e sistematicamente reduzi-los. Isso pode ser feito de várias maneiras e muitas delas são demonstradas neste curso. Comece a meditar em suas manifestações e descubra por si mesmo que elas provocam infelicidade e sofrimento. Dessa maneira estará mais consciente do mecanismo por onde operam para trazer este sofrimento. De posse deste conhecimento, poderá dar passos definidos para remoção dos gostos e desgostos, egoísmo etc., colocando em prática os métodos meditativos deste livro.

Ao mesmo tempo, a identificação incorreta com o complexo corpo-mente pode ser removida seguindo-se os aconselhamentos da seção auto-identificação no Capítulo 5. Isso ajudará na redução do sentido de egiodade e auxiliará a identidade individual estar e concordância com a realidade permanente, o Ser. Da mesma maneira, os yama e niyama descritos no próximo capítulo podem ser praticados para aplacar os kleśas. Karma e bhakti-yoga também são métodos excelentes para reduzir a influência dos kleśas na vida.

Na medida em que se avança no caminho espiritual, os kleśas automaticamente se tornam um fator de influência menor. O leitor pode pensar que pela extinção dos kleśas a vida perderá seu sabor e quase completamente ficará sem significado, pois os gostos, desgostos etc., são características que dão significado a vida. Sem elas, parece que a vida não tem sentido. Isso, é claro, comprova a verdade por trás do quinto kleśa, que somos superapegados a vida como ela é, ou melhor, como nós a percebemos. Contudo, em resposta a essa questão, deve ser notado que a forma pela qual conhecemos e experimentamos o mundo é uma maneira grosseira de se viver. Com o progresso e evolução no caminho espiritual, essa verdade vai gradativamente se desvelando e a percepção de que observamos o mundo através de um estado de consciência advém e isso não se compara a essência mais sutil da vida que vagarosamente brilha por si mesma. Neste caminho concluímos que os apegos à vida são de alguma maneira apegos que não merecem o apego, não valem a pena. Dessa maneira os kleśas iniciam o processo de redução.


Tradução livre de FernandoLiguori.

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