quarta-feira, 26 de março de 2014



Fernando Liguori


Esta lição fez parte da primeira Oficina de Meditação realizada em março de 2010. O texto destaca a importância do mantra na Āyurveda.


O uso dos mantras ou mantra-sādhanā, é um dos mais importantes elementos do esoterismo tântrico e é utilizado iniciática e terapeuticamente tanto pelo Yoga quanto pela Āyurveda. Esta prática é a mais potente forma de linguagem e expressão para a manifestação da consciência. Literalmente, mantra significa instrumento da mente. É um corpo sonoro que produz vibrações ultra-sônicas no organismo. Todo som é uma forma de energia constituída por determinados comprimentos de onda. Embora a Āyurveda utilize diferentes fórmulas sonoras com objetivos terapêuticos, o Tantra e o Yoga os utilizam para levar o praticante a estados superiores de consciência. Portanto, mantra-sādhanā é a prática da repetição verbal ou mental de sons, que por sua vez produzem ultra-sons. Estes ultra-sons vibram sutilmente no corpo prânico, ativando os cakras e desobstruindo as nāḍīs. Na Āyurveda, a terapia através de sons mais comum é a utilização do mantra, que neste processo significa aquilo que salva (trayati) a mente (manas). O mantra é o instrumento principal e mais direto que a Āyurveda se dispõe para curar a mente, desde suas camadas mais profundas até suas manifestações mais exteriores.1

Mantra e respiração

O prāṇa, energia vital, é a vibração sonora primordial que está por trás do universo. Há um som por trás da respiração que é, em si mesmo, um som não-manifesto. Nossas palavras são criadas pelo processo que envolve a respiração. Combinar o mantra e a respiração é um meio eficaz de mudar a energia da mente. Nossas perturbações emocionais estão ligadas aos movimentos inadequados da energia vital. Usar mantra e prāṇāyāma conjugados em uma só técnica resolve este problema.

Mantra e meditação

A maioria das pessoas fracassam na meditação porque não preparam o campo mental como deveriam. A meditação, no seu sentido verdadeiro – voltar à atenção totalmente para um objeto – requer que tenhamos a mente serena e a atenção sob controle. Condicionados que estamos, na era moderna, ao entretenimento, aos prazeres e à racionalização do desejo, isso é algo que de fato não temos. O mantra é um meio de se preparar o campo mental para meditação. Ele dissipa rajas e tamas da mente para que a meditação – que requer sattva para ter um prosseguimento satisfatório – possa ocorrer.

O mantra fornece um veículo para que avancemos na meditação. De modo diverso, os tipos distraídos de pensamento perturbam a mente. O mantra transmite energia à meditação. Tentar criar na mente um vazio ou um estado de silêncio talvez seja apenas tentar voltar nossa atenção ao subconsciente, onde suas tendências obscuras posteriormente podem infligir seu sofrimento a nós. O mantra serve de barco que nos leva pelo oceano do inconsciente. A meditação preparada pelo mantra é mais fácil, mais segura e mais eficaz do que a meditação direta. Quando o mantra penetra o subconsciente, este propicia a meditação, conferindo-lhe eficácia muito maior.

A energética do som

Os sons produzem efeitos psicológicos e fisiológicos específicos. Assim como o clima quente ou frio afeta nosso corpo de determinada forma, os sons e o modo como os repetimos também nos afetam; entretanto, os efeitos dos fatores externos sobre o nosso corpo são mais fáceis de observar do que os efeitos do som. Além do mais, assim como algumas pessoas preferem o calor, enquanto outras gostam do clima frio, assim os efeitos do som, conquanto objetivos, são capazes de interpretações subjetivas diversas. Quando conhecemos a energética dos sons, podemos usá-la terapeuticamente, como fazemos com as ervas ou com os alimentos.

Os mantras são como os āsanas para a mente. Conferem a esta plasticidade e adaptabilidade. Eles exercitam a energia da mente e dão a ela equilíbrio e estabilidade. Assim como o āsana controla o corpo e o prāṇāyāma controla a respiração, o mantra controla a mente. O mantra conserva a força e a integridade do campo mental e favorece adequadamente a circulação das energias nele contidas. Isso reduz nossa vulnerabilidade ao condicionamento exterior que, apesar de tudo, se baseia em grande parte nos nomes.

A terapia com mantra, segundo a Āyurveda, utiliza fundamentalmente o que se conhece por bīja-mantra (sílabas seminais) ou bījākṣara (sons originais) que fundamentam os tipos de sons mais diversos da fala comum. Embora apresentem sons simples e possam ser vocalizados com facilidade, são reflexos de uma energia primordial que não se esgota. Eles são usualmente monossilábicos ou dissilábicos e têm por objetivo, na maioria das vezes, a invocação da divindade associada ao mantra.

Terapia do mantra segundo a Āyurveda

Os mantras podem ser usados pelo agente de cura para energizar o processo de cura, ou pelo paciente/praticante, para aumentar sua própria cura. Os mantras podem funcionar como canais para infundir a energia vital cósmica em métodos de cura. Eles ajudam a purificar o local de tratamento. Eis alguns exemplos: O mantra oṃ é eficaz para criar um espaço de cura; hūṃ é apropriado para dissipar energias negativas que podem estar impregnadas no local de tratamento; raṃ pode ser usado para levar a Luz Divina e a energia vital cósmica ao local de cura. Esses mantras podem ser entoados mentalmente pelo agente de cura ou paciente/praticante a fim de purificá-lo em um nível psíquico. Mantras como krīṃ ou śrīṃ podem ser usados para energizar o poder de cura das ervas ou remédios.

Para problemas mentais ou nervosos, o paciente/praticante deve entoar mantras apropriados como o śaṃ, que alivia a dor, os tremores e a intranqüilidade mental; hūṃ restaura a função nervosa, impede a paralisia e melhora a expressão; soṃ ajuda na reconstituição do líqüido cérebro-espinhal e energiza as camadas mais profundas da mente.

Os mantras devem ser pronunciados com propriedade, o que talvez requeira instruções apropriadas para cada tipo de pessoa. Devem ser feitos com cuidado, na forma de um ritual sagrado. Para ser eficaz, um mantra deve ser repetido pelo menos cem vezes ao dia durante um período de no mínimo um mês. A magia do mantra só vem à luz depois de o termos repetido durante algum tempo. Em geral, um mantra só se torna repleto de energia depois de suas sílabas terem sido repetidas pelo menos cem mil vezes.
Os mantras podem ser repetidos não só durante a meditação, mas também a qualquer momento do dia em que o praticante não esteja ocupado mentalmente. Convém repetir os mantras antes de dormir, para que o sono e os sonhos sejam bons, e assim que acordar pela manhã, para que a atividade mental seja perfeita durante o dia. Períodos prolongados para repetição do mantra podem ser realizados como um jejum mental ou como purificação para consciência. Repetir um mantra por um longo período purifica a mente e os pensamentos das impressões negativas. Trata-se do melhor tratamento para purificar a mente, a qual, de outra forma, encontra-se impura e intoxicada por impressões e pensamentos egocêntricos. A mente que não se purifica pelo mantra dificilmente terá lucidez e paz interior para se desenvolver através da meditação e ascender espiritualmente.

Bīja-mantra2

Quase todos os mantras usados no Tantra são sons nasalados ou aspirados3 e podem ser utilizados de três formas: 1. audívelmente, quando o mantra é vocalizado; 2. mentalmente, quando o mantra é expresso pela linguagem mental sem som audível; e 3. na forma visualizada pela consciência, quando o mantra é sentido em sua essência e vivido na transcendência da consciência, sem fazer uso de nenhuma linguagem.

Como um signo acústico, o significado esotérico do mantra é a vibração (vṛttispandana) que representa a divindade, enquanto seu significante é a vibração sonora, sempre pronunciada em idioma sânscrito, a língua-mãe da ritualística tântrica (śruti-gocara). Neste caso, a vocalização produz um efeito tanto material quanto imaterial.

A ciência dos mantras leva em consideração quatro estágios: 1. parā, o signo vocálico transcendente, a vibração primordial que se quer invocar; 2. paśyanti, a expressão mental por detrás das formas (significado); 3. madhyamā, a forma acústica (significante); e 4. baikharī (ou vaikharī), a vibração sonora audível que traz o mantra ao mundo da materialidade. Estas quatro etapas são frutos de uma ação sentida, usadas conscientemente, de forma audível ou não.

No Tantra, cada deusa tem seu bījā-mantra e este é sempre uma interjeição de poder, para nos despertar para sua presença e manifestação.4 Portanto, no tantrismo os bījā-mantras são usados para despertar a nossa consciência para a presença da Divindade em nosso corpo. Em verdade, sendo a divindade onipresente, Ela sempre está conosco, mas nem sempre nós estamos atentos a Ela. Durante as práticas tântricas o sādhaka utiliza os mantras para expandir sua consciência, elevando-a até a presença divina. Por isso, essas vibrações de poder devem sempre ser utilizadas dentro de um contexto sagrado.

O que se segue são alguns bījā-mantras, sua associação com as Deidades, modo de vocalização e aplicações terapêuticas. Eles devem ser utilizados em conjunto com a meditação, tendo como tema seu significado.

1.    Oṃ (Tārā Devī, a Deusa da proteção espiritual). Pronuncia-se aum. Este é o mantra que representa o próprio Verbo Divino. Serve para energizar todos os mantras, conferindo-lhes força e poder. Ele pode ser incluído antes ou depois de qualquer mantra. Purifica a mente, abre as nāḍīs e libera ojas. Trata-se do som da afirmação que nos permite aceitar quem nós somos e nos abrir às forças positivas do universo. Oṃ é o som do prāṇa e o som da Luz Interior que conduz nossa energia espinha acima. Desperta a energia vital positiva (prāṇa) necessária para que a cura da consciência ocorra. Realiza todos os potenciais da consciência. Segundo as escrituras tântricas, este é o som da criação do universo, é jóia dentre todos os mantras, a ponte para se atingir os outros mantras, sua natureza é Śabda Brahman, o Absoluto.
2.    Hūṃ (Śiva, o Deus transcendente). Pronuncia-se hoom. Este mantra dissipa influências negativas que nos atacam, sejam elas agentes patogênicos, emoções negativas, e até mesmo ataques de magia negra. Este mantra desperta o agni, como o fogo digestivo ou da mente. Dissipa as toxinas físicas e psicológicas, assim como purifica as nāḍīs. Aumenta tejas e a capacidade de percepção da mente (buddhi), facultando o controle sobre nossa natureza volitiva. Este é o som da ira divina.
3.    Aiṃ (Saraswatī Devī, a Deusa da sabedoria). Pronuncia-se aym. É um mantra indicado para melhorar a concentração, o pensamento correto, os poderes da razão e da fala. Desperta e aumenta a inteligência (buddhi), particularmente em sua função ligada à criação e à expressão (coordenação de buddhi-manas). É indicado nos problemas mentais nervosos, para restaurar as faculdades da fala, da concentração e para fazer com que o processo de aprendizagem tenha prosseguimento. Ajuda no controle dos sentidos e da mente.
4.    Śrīṃ (Lakṣmī Devī, a Deusa da prosperidade e da abundância). Pronuncia-se shreem. Este é um mantra importante para promover saúde, beleza, criatividade e prosperidade em geral. Śrīṃ fortalece o plasma e os fluídos da reprodução, abastecendo os nervos, aumentando a saúde e a harmonia como um todo. Torna a mente aguda e sensível, ajudando-nos no que concerne à verdade.
5.    Hrīṃ (Bhuvaneśvarī Devī, a Mãe do Mundo). Pronuncia-se hreem. Este é o principal mantra da Mãe Divina (Ādi-Śakti) sob qualquer um de seus múltiplos aspectos. No texto Śākta denominado Devīgītā (IV: 41-43) a Grande Mãe prescreve que a meditação em seu nome místico hrīṃ realiza a identidade entre Ela e o devoto. De acordo com a tradição Śākta, este é o mais importante de todos os mantras. É conhecido como devī pranāva, o equivalente ao mantra oṃ, mas dedicado a todas as deusas. Portanto, é um mantra genérico para a consorte de Śiva, Maheśvarī, a Deusa Suprema. É um mantra de purificação e transformação. Transmite energia, alegria e êxtase. Ajuda em qualquer processo de desintoxicação.
6.   Krīṃ (Kālī Devī, a Deusa da transformação yogī). Pronuncia-se kreem. Este mantra reflete o poder da ação, da atividade (kriyā) yogī. Possibilita capacidade de trabalho e confere força e eficácia nas realizações. Melhora a capacidade de fazermos mudanças na vida. É apropriado para se entoar durante o preparo dos alimentos e das ervas, pois permite que elas tenham maior ação.
7.    Klīṃ (Kāmeśvarī Devī, a Deusa da Beleza). Pronuncia-se kleem. Proporciona força, vitalidade sexual e controla a natureza emocional. Aumenta kapha e ojas. Proporciona equilíbrio, estimula o talento artístico e a imaginação.

O uso da mālā

A repetição do mantra, chamada japa, pode ser feita de três maneiras: em voz alta, na forma de um murmúrio quase inaudível, ou mentalmente. A mais potente é a última. Todas elas possuem uma estreita relação com a respiração, o prāṇāyāma e o mātra (ritmo).

Para auxiliar-nos a manter o ritmo durante a prática, e também para contar o número de repetições feitas, utilizamos o mālā, um colar de 108 contas feito de sementes de sândalo (utilizado pelos vaiṣṇavas), sementes de rudrākṣa (utilizado pelos śaivas e śāktas) ou outro material. Tomando-o a mão, deslize as contas uma a uma pelos dedos, cantando a partir da primeira, junto àquela que está separada do fio principal (essa não se canta), chamada meru. A cada conta corresponde a repetição de um mantra. O ritmo pode ajustar-se a respiração, a pulsação sanguínea, ou mentalmente. Mas a cadência deve ser sempre a mesma. Ao finalizar as 108 contas, vire a mālā e retome o processo. A mālā deve ser segurada sempre com a mão direita, entre os dedos polegar e médio. Pratique mais de uma vez por dia. Para prática, números ímpares são melhores, segundo a tradição.


Notas

1.    Os mantras são a parte mais importante da terapia espiritual e mental da Āyurveda. Esta usa a terapia do mantra para acabar com as perturbações psicológicas e psíquicas. Essas perturbações são um desequilíbrio da energia no campo mental. Um mantra de energia positiva é utilizado para neutralizar este desequilíbrio. Terapeuticamente, os mantras ajudam a equilibrar os humores biológicos (vāta, pitta e kapha) e suas contrapartes sutis (prāṇa, tejas e ojas). Ajudam a harmonizar a consciência, a inteligência e a mente.
2.    Nesta oficina de meditação, nós não iremos lidar com o que passou a denominar-se japa-mantra (não confundir com japa-mālā), que é uma forma de declaração de preces ou recitação de hinos de louvor. Embora os hinos, as preces e as ladainhas também sejam denominados mantras, seu uso no tantrismo é restrito às oferendas e veneração das divindades. Quase sempre esses mantras polissilábicos seguem uma métrica própria – como é o caso da gāyatrī-mantra –, com seqüências de oito sílabas, sempre recitadas para preparação do ambiente psíquico e psicológico.
3.    O som aspirado é uma forma de vocalização especial e importante no tantrismo, pois representa a vibração sutil da śakti. Sua grafia é representada por dois pontos no final da escrita em devanāgarī e pela letra na transliteração clássica. Esse som é o símbolo da expressão da śakti e é denominado visarga, como no mantra haṃsaḥ.
4.    Os mantras dissilábicos são empregados com freqüência, de forma isolada ou em combinação com outros mantras. Por exemplo, o mantra svāhā, associado ao poder feminino do Deus Agni pode ser utilizado como fechamento de mantras associados à devī, como o oṃ mahākālī svāhāḥ.


2 comentários:

  1. Seria legal se você gravasse um audio com estes mantras, seria muito bom !, meus parabéns pelo artigo excelente !

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  2. Gratidão Leandro. No Youtube você pode encontrar estes mantas. Até em mp3 na net.

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