quarta-feira, 9 de julho de 2014




Fernando Liguori


Estudos sobre as técnicas de Yoga ensinadas por Mahāṛṣi Gheraṇḍa ao seu aluno, o rei Caṇḍakāpāli na Gheraṇḍa-saṃhitā. Grupo de Estudos Kaula, 2014.


Palavras iniciais

A meta principal do haṭha-yoga é equilibrar o fluxo de prāṇa nas nāḍīs iḍā e piṅgalā. A palavra haṭha, como veremos ao longo do texto, é formada por dois bīja mantras: ham que representa o sol ou a força solar e ṭham que representa a lua ou a força lunar. Para alcançar o equilíbrio entre essas duas forças, o corpo precisa primeiro ser purificado através dos ṣaṭ-karmāṇi. O objetivo do haṭha-yoga é equilibrar estes dois fluxos. As primeiras escrituras do haṭha-yoga apresentavam a tradição como um grupo de seis ações de purificação corporal «ṣaṭ-karmāṇi» que não possuíam apenas o objetivo de desintoxicar o corpo físico «annamaya-kośa», mas auxiliar na reorganização e reestruturação do prāṇa no corpo de energia «prāṇamaya-kośa» e na estabilização da estrutura mental «manomaya-kośa». É nosso objetivo indagar o que é tradicional na filosofia e prática do haṭha-yoga e explorar um pouco estas práticas que compõem a estrutura original da tradição.

Eu chamo o haṭha-yoga, conforme praticado no Ocidente, de Yoga Postural. Esse tipo de Yoga é descendente de um grupo de escolas que se instalaram no Sul da Índia, cuja idade se perdeu na noite dos tempos. Não é minha intenção dissertar sobre estes aspectos históricos no momento. O que proponho é indagar o porquê inúmeros praticantes e professores chamam este tipo de yoga de Haṭha Yoga Tradicional?
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Bem, o que sabemos é que o haṭha-vidyā vem, com o passar do tempo, ganhando novos recursos ou mecanismos – se assim posso utilizar estas palavras – para alcançar seu objetivo principal: mokṣa «liberação». Inúmeros são os mestres que ao longo do tempo vêm trazendo novos conceitos para a prática. Mas eu pergunto: com a influência de seus ensinamentos, no Ocidente, a tradição se mantém? Para responder a todas estas indagações temos de ir fundo no estudo do haṭha-vidyā. Infelizmente isso é impossível neste artigo, pois minha visão do contexto ou pano de fundo sobre a tradição é amplamente filosófica – compreendendo aspectos epistemológicos e metafísicos, o que inclui uma noção crucial de auto-identidade – e isso engloba um estudo nos campos da mitologia, cosmologia, história e fisiologia.

Ademais, os temas que colorem o mosaico da filosofia haṭha são compartilhados por muitas outras tendências dentro do pensamento indiano. Portanto, um estudo da tradição do haṭha-yoga não pode ser feito de forma isolada, mas, necessariamente, deve recorrer a uma gama de fontes que influenciaram o desenvolvimento de sua cultura desde os primórdios daquilo que conhecemos como a Tradição do Yoga.[1]

O haṭha-yoga no ocidente é tradicional?

Fora da Índia, mais especificamente no Ocidente, o termo haṭha-yoga é comumente associado ao trabalho com posturas físicas e técnicas de relaxamento. Mas fora deste contexto comum e deturpado, em sua forma tradicional, o haṭha-yoga oferece muito mais do que um treinamento físico ou métodos para o alívio do estresse. A utilização das práticas do haṭha-yoga para o aumento da resistência, flexibilidade e agilidade e para aliviar o sistema nervoso depois de um dia estressante de trabalho é perfeitamente válido, mas em um nível apropriado apenas. É uma injustiça grosseira reduzir essa nobre tradição ao estrito conceito de método yogī de aperfeiçoamento corporal, frase esta que li há poucos dias em um livro. Enquanto vejo professores e praticantes dando valor em demasia a prática corporal, é preciso dizer, em alto e bom som, que no opulento palácio do haṭha-yoga, estes aspectos constituem apenas os portões de entrada. Deveria ser notado ainda que o grau de dedicação que se espera de um adepto indiano do haṭha-yoga está muito longe do grau de dedicação do típico praticante ocidental do Yoga Postural. Enquanto este último está contente em freqüentar uma ou duas vezes por semana uma classe de práticas yogīs – e quem sabe talvez até adote uma rotina curta de práticas em seu dia-a-dia – o primeiro irá se submeter a uma rigorosa e devotada vida de práticas que lhe orientarão ao objetivo máximo da realização espiritual.

A identificação popular do haṭha-yoga com o Yoga Postural tem levado o âmago da tradição a ser contrastado com outras tradições yogīs. É evidente que, tradicionalmente, existem diferentes pontos de vista na tradição do Yoga e uma característica marcante hoje em dia – do ponto de vista haṭha-yogī – é a ênfase no trabalho corporal, mas aqui há rígidas distinções e este ponto de vista deturpado precisa ser colocado em seu devido lugar. É preciso observar o haṭha-yoga como uma disciplina soteriológica. O que distingue o haṭha-yoga de outros sistemas não é a filosofia subjacente que permeia cada um – até porque há elementos comuns entre as tradições – mas a ênfase dada a um grupo particular de técnicas. Isso inclui técnicas posturais, mas também (e quem sabe mais importante), técnicas concernentes a alteração dos ritmos respiratórios, a retenção da força vital e o treino da mente.

A autenticidade do haṭha-yoga moderno e suas bases tradicionais

No grande escopo da tradição do haṭha-yoga como a conhecemos hoje, existem inúmeras escolas, estilos e tradições, muitas vezes ressaltando algum mestre em particular e declarando ser mais ou menos autêntica. Contudo, nós podemos incluir essas escolas, sistemas e estilos diferentes de Yoga em duas grandes tradições: a do Norte e a do Sul da Índia. A tradição do Sul é o Yoga praticado e supervisionado pelo grupo sulista de sadhus e santos, ascetas e reclusos, místicos e siddhas que acreditam que a perfeição máxima pode ser adquirida ao atingir a plena perfeição física. Os estilos de Yoga descendentes desta tradição sulista que mais influenciaram o Ocidente nos tempos modernos foram: (a) Vinyāsa Yoga (o yoga fluido),[2] revivido por Shriman T. Kṛṣṇamācārya (1888-1989) de Mysore, Sul da Índia. Esse estilo foi amplamente refletido no Aṣṭāṅga Yoga de seu discípulo K.P. Jois (1915-2009); (b) o viniyoga,[3] um estilo adotado por T.K.V. Desikachar baseado nos ensinamentos de seu pai, Kṛṣṇamācārya; e (c) o Iyengar Yoga, proposto por outro aluno de Kṛṣṇamācārya, B.K.S. Iyengar (1918-). Todos esses estilos oferecem uma abordagem física maior e acredito serem eles os que mais influenciaram os grupos haṭha-yogīs ocidentais no que concerne a prática exclusiva dos āsanas ou Yoga Postural.

A tradição do haṭha-yoga praticada e ensinada pelos rīśīs, munis e tapasvis na cintura do Gaṅges, Narmada e aos pés do Himalaia está conectada a tradição do Norte. Com forte influência da doutrina exposta nas upaniṣads, a tradição do Norte segue um Yoga mais meditativo, com ênfase no trabalho sobre a mente. Ele é caracterizado por uma prática disciplinada através da qual é possível fortalecer a natureza individual, conhecer o espírito humano e despertar o potencial inerente em cada pessoa, o que permite a transformação num ser humano perfeito e equilibrado. Três foram os mestres descendentes desta tradição do Norte que mais influenciaram o Ocidente: (a) Swāmi Śivānanda de Rishikesh quem deu ao Yoga uma roupagem dinâmica, trazendo-o da filosofia para a prática. No princípio da década de 1940-50, Swāmi Śivānanda começou a ensinar os aspectos práticos do Yoga aos seus discípulos saṃnyāsins. Ele ensinou-lhes o haṭha-yoga, o rāja-yoga, o bhakti-yoga, o jñāna-yoga, o kriyā-yoga, o kuṇḍalinī-yoga, o mantra-yoga e todos os tipos de Yoga encontrados nas upaniṣads. Swāmi Śivānanda deu ao mundo um entendimento do Yoga como caminho de desenvolvimento para qualquer pessoa, quer fossem saṃnyāsins, yogīs ou pessoas vulgares; (b) Swāmi Viṣṇudevānanda, discípulo de Swāmi Śivānanda, estabeleceu vários centros de Śivānanda Yoga Vedānta ensinando haṭha-yoga; e (c) nosso paramguru, Swāmi Satyānanda Saraswatī, também discípulo de Swāmi Śivānanda e fundador da Bihar School of Yoga, quem enfatizou o Yoga Integral, com componentes de todos os Yogas, com maior ênfase no Yoga Tântrico.[4]

Existem, é claro, inúmeros mestres menos conhecidos na tradição do haṭha que também possuem seu próprio ponto de vista, repassando sua sabedoria de geração em geração, completamente desprovidos do desejo de fama. Todas estas escolas, de uma maneira ou de outra, promovem alguma forma de haṭha-yoga, tradicional ou não.

Antes de entrarmos no objetivo principal de nosso estudo, que é uma análise mais acurada das práticas de purificação «ṣaṭ-karmāṇi», deixe-me dizer, em linhas gerais, qual a visão comum do haṭha-yoga.

A visão comum do haṭha-yoga

O haṭha-yoga[5] – também conhecido como haṭha-vidyā[6] – é uma parte da soteriologia indiana,[7] i.e. um sistema técnico que propõe o alcance da liberação, libertação ou salvação a seus adeptos. Existem inúmeros termos sânscritos que descrevem este objetivo, dentre eles os mais comuns são mokṣa e kaivalya. O termo em português que mais utilizo para traduzir este objetivo do haṭha-yoga – e do Yoga em um sentido geral – é auto-realização, o que é uma abreviação do conceito de realização da verdadeira natureza do Ser. O Ser (com letra maiúscula) sendo paramātman «o mais elevado ou supremo Ser» que, de acordo com a filosofia do Yoga, é idêntico a Brahman «o Absoluto».

O objetivo principal da prática haṭha-yogī é estabelecer a retenção e união «yoga» de dois polos prânicos, a força sutil que permeia todo complexo corpo-mente: prāṇa e apāna.[8] O praticante fecha vários orifícios através dos quais o prāṇa pode escapar. Isso ele faz por meio de contrações musculares conhecidas como selos «mudrā» ou fechos «bandha» empenhando-se em fazer prāṇa e apāna se movimentarem em direções contrárias, causando sua união dentro do canal central conhecido como suṣumnā-nāḍī. O calor «tapaḥ» ou fogo «agni» que resulta desta poderosa união desperta uma força mais refinada e potente conhecida como kuṇḍalinī-śakti, caracterizada como a Deusa «devī» e representada como uma serpente enrolada. Esta Serpente de Poder sobe através da suṣumnā-nāḍī, perfurando e abrindo os centros de poder «cakras» unindo-se com Brahman (personificado como Śiva) em sua morada final, o sahasrāra-padma (conhecido como lótus de mil pétalas) localizado acima da coroa da cabeça.

Em um nível popular, a palavra haṭha é tida como um adjetivo que significa forte, vigoroso, potente, violento, impetuoso, energético, firme, persistente, agressivo, corajoso, valente ou esforçado. Portanto, uma interpretação literal para haṭha-yoga seria Yoga da Força ou Yoga Vigoroso. Essa pode ser uma tradução correta do termo na medida em que essa disciplina utiliza técnicas vigorosas, mas tal interpretação provê apenas um entendimento parcial, senão insignificante.

Para dar uma explicação mais profunda, os haṭha-yogīs oferecem um folclore etimológico que consiste em dividir a palavra haṭha em dois bīja-mantras compostos. Ha ou Ham refere-se ao sol «sūrya» e ṭham ou kṣam a lua «candra»; daí surge à tradução união do sol com a lua ou harmonia entre os aspectos solares e lunares para o termo haṭha-yoga. Sol «sūrya», lua «candra ou soma» com fogo «agni», são potentes símbolos da mitologia indiana, principalmente na tradição do haṭha-yoga. No haṭha-vidyā, estes símbolos recebem várias associações e correspondências, as mais importantes sendo:

Sol – (a) o prāṇa que ascende através de piṅgalā-nāḍī (a direita de suṣumnā), (b) piṅgalā-nāḍī, e (c) a energia sutil feminina calafetada conhecida como rajas «lit. espaço ou vazio» que deve ser unificada ou integrada com a energia masculina resfriada conhecida como bindu.

Lua – (a) apāna – o prāṇa – descendente através de iḍā-nāḍī (a esquerda de suṣumnā), (b) iḍā-nāḍī, e (c) bindu «lit. ponto ou semente», a essência sutil da energia masculina que se manifesta em um nível físico mais grosseiro como sêmen «shukra ou shukla».

Fogo – (a) a força transmutante da combustão interna que leva a união de prāṇa e apāna em suṣumnā-nāḍī, (b) suṣumnā-nāḍī, e (c) kuṇḍalinī-śakti que é despertada de seu sono pelos métodos do haṭha-yoga.

Em linhas gerais, bem resumidamente, essa é a visão comum do haṭha-yoga. A partir daqui vamos explorar um pouco mais a estrutura original do haṭha-yoga, i.e. os ṣaṭ-karmāṇi.





[1] O Yoga tem duas origens, uma são os Tantras e outra são os Vedas. Os Tantras desenvolveram uma filosofia e um conjunto de práticas que na tradição tântrica são conhecidas como Yogachara, conduta para as pessoas que praticam Tantra através do Yoga. A tradição védica descreve o Yoga na forma das upaniṣads. Cada upaniṣad representa uma linha de aprendizagem, uma tradição, um pāramparā. O Yoga tornou-se o processo de desenvolvimento do corpo e da mente que conduz à experiência do espírito. Esta é a visão que as tradições tântrica e védica têm do Yoga.
[2] Nyāsa significa colocar e o prefixo vi significa especial ou particular. Portanto, vinyāsa se refere a uma série de posturas executadas de uma forma particular.
[3] Viniyoga, que literalmente significa partilha, rateio, distribuição, divisão, é um termo utilizado por Desikachar que designa uma forma de Yoga desenvolvida para as necessidades de cada indivíduo.
[4] O Yoga Integral enfatizado por Swāmi Satyānanda é uma herança de seu guru. Swami Śivānanda acreditava firmemente naquilo que ele denominou Yoga Integral, no qual todos os aspectos da personalidade são canalizados através da prática combinada dos principais aspectos da filosofia yogī. Seu lema era: Servir, Amar, Meditar e Realizar. Isso compreende cinco diferentes aspectos do ser: ação, devoção, introspecção, inquirição e o corpo (o último inclui a meditação).
[5] Haṭha-yoga deveria ser fortemente pronunciado como hut-huh yo-guh. Em sânscrito, o ponto embaixo do na palavra haṭha indica que a letra deve ser pronunciada com a ponta da língua virada para trás tocando o palato duro.
[6] Vidyā: conhecimento, visão, sabedoria, ciência.
[7] Soteriologia vem da palavra grega soteria «salvação», sendo referida como o estudo da (ou os meios para se obter) salvação. No contexto indiano, salvação deve ser compreendida como auto-realização, não como uma vida-além-da-morte no céu.
[8] Prāṇa pode ser interpretado como princípio organizacional. Significa literalmente força que se move para frente. Regula todos os processos de absorção: o movimento inspiratório, a assimilação de alimentos sólidos e líquidos e a recepção das impressões sensoriais. É centrípeto por natureza e tem como finalidade colocar as coisas em movimento. Localiza-se na parte superior do tórax, entre a garganta e o umbigo. Apāna significa literalmente força que se move para baixo. Controla todos os processos de excreção (sêmen, urina e fezes) e eliminação (eliminação de dióxido de carbono na respiração, menstruação e nascimento). Por causa dessa função de expulsão, o apāna é responsável pelo bom funcionamento do sistema imunológico. No nível sutil, regula a expulsão das experiências negativas, emocionais e mentais. Movimenta-se centrifugamente, para baixo e para fora e está localizado na parte inferior do abdômen.

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