sábado, 2 de agosto de 2014



. terceira parte .


Fernando Liguori


[Satsanga realizado durante os nove meses do Curso de Aprofundamento em Yoga ministrado pelo Instituto Kaula em 2011.]


O aspecto determinado e negociável de buddhi

O terceiro aspecto de mahat é buddhi. Buddhi tem dois aspectos: o determinado e o negociável. O aspecto determinado de buddhi denota firmeza de pensamento, ideia e conhecimento. Os pensamentos, ideias e percepções não são vacilantes, oscilantes e flutuantes. Esse aspecto da mente firme e claro é a inteligência decidida, conhecida como niṣcayatmika-buddhi, o aspecto estável de buddhi. Sua natureza flutuante é conhecida como vyāvasayatmika-buddhi.

A maior parte do tempo, vyāvasayatmika-buddhi ou o aspecto negociável de buddhi está ativo em nós. É muito normal os alunos chegarem até nós, os professores de yoga, relatando seus problemas cotidianos. Em seguida, eles procuram outra pessoa para relatar seus problemas na intenção de receberem algum conselho ou apontamento. Novamente, eles vão até uma terceira pessoa e dizem: «olha, eu estou com esse problema; meu professor de yoga disse isso, mas meu amigo disse aquilo, o que você acha?» Uma pessoa nessas condições não consegue se conectar consigo mesma pois está flutuando nas opiniões alheias. Não existe fé, confiança em si mesmo ou entendimento. Se houvesse um entendimento mais profundo as respostas seriam cuidadosamente analisadas e avaliadas a partir do ponto de vista da consciência. Ou seja, na falta de entendimento buddhi torna-se a causa de confusão na mente.

Vyāvasayatmika-buddhi é como uma abelha que vai de flor em flor para coletar o pólen. Muitas pessoas podem dizer que isso é aproveitar o melhor de tudo. Se pegarmos o melhor de tudo e de todos, qual o «melhor» será realmente útil para nós? Isso irá criar confusão e pânico na mente. O aspecto negociável de buddhi tem a qualidade da barganha; ele procura o melhor ao menor preço. Já o aspecto determinado de buddhi tem a qualidade da vontade resoluta, cujo objetivo é alcançar a clareza.

O gerenciamento de buddhi através de viveka e vairāgya

Gerenciamos buddhi através da discriminação e do desapego. A força que transforma buddhi é viveka, a habilidade discriminativa. Existe um ditado que diz que o cisne real possui a habilidade de separar o leite da água. Sendo isso real ou não, a ideia indica a aplicação de viveka-buddhi, a habilidade discriminativa. Saber o que é apropriado e o que não é apropriado. A aplicação dessa força refina a qualidade de buddhi.

Quando buddhi não é utilizado de forma apropriada ele torna-se confuso e obscurecido. Quando ele é utilizado de maneira apropriada tona-se afiado e refinado. Buddhi também é a fonte de todas as vāsanās, peixões e desejos. Quando as vāsanās tornam-se fortes e poderosas na mente, elas colorem buddhi, modificando sua natureza. É como a tinta que se mistura na água. Se jogarmos tinta preta em um balde d’água todo o seu conteúdo irá mudar de cor. Se o apego surge como um reflexo dos desejos, isso também irá colorir buddhi, modificando sua estrutura. Se qualquer tipo de comportamento viciado ocorrer por conta de qualquer vāsanā não satisfeita, buddhi será completamente colorido.

A história de Tulsidas, o santo, ilustra essa ideia. Ele era casado com uma belíssima mulher. O grande problema é que ele era completamente obsecado por ela. No início ela aceitou seus cuidados e atenção desmedida, mas com o passar dos anos ela ficou esgotada e disse a ele que precisava de um tempo. Um dia, aproveitando que Tulsidas havia ido ao mercado, foi embora para casa de seus pais, do outro lado do rio. Quando retornou do mercado, Tulsidas ficou transtornado com a ausência de sua esposa. Sua mente ficou ainda mais inquieta quando obteve dos vizinhos a notícia de que sua esposa havia partido para casa de seus pais. Ele pensou: «preciso ir vê-la; como poderei viver nessa casa sem ela?»

O anoitecer já havia chegado e aquela era a época das monções. A chuva caia forte, o rio estava cheio e todos os barqueiros haviam recolhido seus barcos e ido para casa. Naquela escuridão Tulsidas viu uma tora de madeira flutuando na água. Sem pensar, ele saltou e agarrou a tora, remando até alcançar a outra margem. Depois, caminhou na escuridão tarde da noite até chegar à casa dos pais de sua esposa. Tudo estava apagado e todos já estavam dormindo. O quarto dela era no segundo andar e Tulsidas estava ávido por chegar lá.

Ao caminhar em volta da casa, ele observou uma corda que pendia da varanda do quarto de sua esposa. Agarrando a corda ele pensou: «minha esposa tem muita consideração por mim; ela sabia que eu não poderia ficar sem ela e que viria lhe buscar; para não incomodar seus pais ela deixou aqui uma corda para mim.» Ele subiu pela corda até a varanda e bateu na porta. Sua esposa levantou, abriu a porta e ficou pasma de ver Tulsidas ali, parado em sua frente. Quando ele disse que veio vê-la ela exclamou: «nós estamos no período das monções; como você atravessou o rio e subiu na varanda?» Ele lhe contou sua proeza. Mas ela não havia deixado corda nenhuma. Ao pegar uma lamparina eles descobriram que a corda era, em realidade, uma serpente. Quando foram ver a tora com que atravessou o rio, descobriram que era um cadáver. Sua esposa então disse: «se você tivesse por Deus um por cento do amor que tem por mim seria uma pessoa bem diferente.» Aquelas palavras atingiram Tulsidas como uma tonelada de tijolos. Ele olhou no fundo de seus olhos e disse: «você está certa!» Virou as costas e foi embora. Daquele dia em diante ele se dedicou somente a Deus.

Essa história indica que as paixões e desejos nascem em buddhi. As vāsanās nascem em buddhi. Quando o desejo e a paixão surgem, a discriminação do que é apropriado e do que não é não ocorre. Existe um ditado em sânscrito que diz kāmāturanam na bhayaṃ na lajjā, quer dizer «a pessoa que está obcecada e apaixonada não conhece o medo ou a vergonha». A pessoa repleta de vāsanās corre cegamente atrás de sua satisfação, tornando essa atitude a causa do apego. A fim de se gerenciar buddhi é necessário desapegar-se desses apegos.

Citta e seu prazer nos atrai, mas buddhi nos torna apegados. Quando vemos um carro que nos agrada citta diz: «esse é um carro legal, é mais bonito que aquele que passou». Isso é atração, rāga. Existe atração pelo que é prazeroso. Se um vendedor bate na nossa porta para nos oferecer um produto inferior àquele que já possuímos, dizemos: «não gostei desse modelo». Imediatamente ocorre dveṣa, repulsa, na medida em nos lembramos de que possuímos algo melhor.

Rāga se transforma em asakti, apego. Se comprarmos o carro que apreciamos com consciência de posse ele se tornará um apego. O sentido de posse ocorre e o apego é o resultado dessa ideia equivocada. É uma ideia desencadeada por buddhi em seu mal funcionamento. É buddhi que toma as decisões relacionadas aos objetos e ao nosso bem-estar. É buddhi que decide o que queremos e o que não queremos. Essas decisões se manifestam na forma de desejos na vida, criando apegos. A paixão extrema ou natureza obsessiva que se manifesta em buddhi cria os apegos, os elos ou associações aos objetos.

Todos nós sofremos por conta dos apegos. Nos apegamos a coisas tão pequenas que às vezes nem nos tornamos conscientes disso. Uma caneta que não funciona mais, sendo um presente do avô há cerca de trinta anos, ganha status de relíquia. Isso gera um apego. É necessário se desapegar até mesmo das coisas mais triviais.

O método para quebrar a cadeia cíclica dos desejos é o cultivo de draṣṭa-bhāva, a atitude de observador, o que abre caminho para anasakta-bhāva, atitude não apegada na vida. Portanto, para gerenciar buddhi é necessário cultivar viveka e vairāgya. Com vairāgya é possível se tornar a testemunha da causa do apego, paixão, desejo, necessidade ou dependência. Com viveka é possível modelar o comportamento de buddhi, redirecionando-o positivamente. Viveka auxilia no comportamento de buddhi sem alterá-lo. Quer dizer, buddhi continua operando em suas funções normais, com os mesmos desejos se manifestando, só que de maneira direcionada, modulada. Nesse caminho, é possível discriminar entre o que é um desejo e uma necessidade. No presente, não possuímos essa habilidade. Não sabemos o que é o desejo, o que é a paixão e o que é o necessário, verdadeiramente útil. Viveka nos provê força, energia e consciência para conhecer e vairāgya nos ajuda a nos desconectar de asakti, os apegos obsessivos. Dessa maneira, buddhi torna-se livre dos enlaces de māyā, tornado-se capaz de perceber outras realidades.


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