Fernando Liguori
Tantra é uma cultura e suas diversas práticas estão divididas
genericamente sobre duas categorias: «mão esquerda» e «mão direita»,
respectivamente vāmācāra e kaulācāra. O pensamento tântrico
aceita a vida como ela é, como ela evolui naturalmente e procura proporcionar o
desenvolvimento dos diferentes aspectos da personalidade sem impor disciplinas
idealistas. A tradição busca apenas transformar a atitude humana, seu comportamento,
natureza e expressão.
Nós temos certos desejos de acordo com nossos gostos e escolhas. Agora,
esses desejos, ambições ou objetivos que estabelecemos na vida, representam nossa
auto-satisfação: «eu quero me satisfazer», «eu tenho de alcançar algo na vida»,
«eu tenho de ser alguém». Este desejo de auto-satisfação pode ser uma grande
força motivadora se for canalizado em uma direção positiva. Ele também pode ser
uma força deveras limitativa e egoísta se for canalizado em uma direção negativa.
Assim, a principal ênfase do Tantra está em canalizar todo o tipo de desejo,
sentimento e instinto, dotando-lhe com características espirituais. Isso é
necessário porque os instintos de fome, prazer sensorial e sensual, medo, etc.
são considerados instintos ligados à vida «mundana». É necessário mudar o foco,
a perspectiva.
No Tantra, o confronto direto com os instintos que inibem o crescimento de
nossa personalidade ou que restringem nossas expressões é necessário. O desejo
seja na forma de prazer sensual, sexual, sensorial etc. é uma força muito
poderosa que pode expandir a nossa percepção ou limitá-la. O objetivo é atingir
a realização final do que está por trás dessas forças, instintos e impulsos. O
que eles são? De onde eles estão vindo? Em que direção eles estão indo? Como podemos
sublimar a energia que está contida em um instinto, no desejo ou na ambição?
O Tantra prescreve certas práticas espirituais para isso. Uma deles, por
exemplo, exige que o sādhaka vá ao cemitério meditar. Agora, quem vai
para o cemitério e tenta meditar certamente irá ter insuficiência cardíaca se
sua psique começar a se manifestar. Por manifestação psíquica quero dizer as
experiências internas na forma de instintos e impulsos que começam vir à tona e
geralmente a experiência é visual. A pessoa pode ver algo que não está lá, que
não existe. Ela pode ver um fantasma, um espírito, uma divindade, um demônio
etc., qualquer coisa. É uma projeção de sua própria consciência e o sādhanā
tântrico atua como um catalisador para projetar a consciência e experimentá-la
em toda a sua variedade.
Se somos capazes de mudar nossas atitudes, nossas percepções cotidianas e
nossa ideia acerca de nós mesmos, então certo tipo de purificação ou
transformação ocorrerá em nosso interior. Vamos além da experiência do
instinto, impulsos, saṃskāras e karmas da vida. Diferentes tipos
de personalidade foram definidas no yoga, na psicologia moderna e no
Tantra. O yoga definiu a personalidade de acordo com os três guṇas:
sattva, rajas e tamas, enquanto que a psicologia moderna
tem classificado em termos de dinâmica, emocional, intelectual e psíquica.
O Tantra classifica personalidade como paśu, vīra e divya.
Paśu significa «boi» e representa a personalidade animalesca. Vīra
significa «herói» e representa a personalidade guerreira que superou seu
aspecto animalesco. Divya significa «divino» e refere-se à personalidade
sutilizada, espiritualizada, além das necessidades mundanas. De acordo com o
sistema tântrico estas três personalidades contêm os aspectos de sattva,
rajas e tamas. Mesmo uma pessoa de personalidade animalesca possui
características sattva, rajas e tamas. As pessoas de
personalidade mais refinada terão características de rajas e tamas
em intensidade distinta. Esta é uma classificação ampla que representa a
estrutura básica de nossa personalidade. Nesse caminho, a transmutação da
personalidade animalesca para a personalidade heróica e posteriormente a
personalidade mais refinada ocorre através do sādhanā tântrico.
O sādhanā tântrico é muito difícil de ser compreendido,
principalmente pelo ocidental, pois sua execução tornou-se associada a práticas
que envolvem certo tipo de satisfação sensual. No entanto, se estudarmos as
diferentes tradições do Tantra descobrimos que seus princípios são baseados no
Sāṃkhya: o despertar dos cakras e da kuṇḍalinī através da prática
de prāṇāyāma e mantras, a concentração em yantras, maṇḍalas
e outros tipos de meditação.
O Tantra considera que o feminino seja um aspecto superior na criação.
Nesse caminho, quem promove a iniciação é a mulher: a esposa pode iniciar o
marido, a mãe pode iniciar o filho ou a filha pode iniciar o pai.
O Tantra tem sido associado a outras filosofias como o Budismo: vajrayāna,
mahayāna, tantrayāna e mantrayāna. Escolas cujas práticas
são essencialmente meditativas e analíticas, portanto, apresentam as principais
características do jñāna-yoga, a auto-análise e o auto-conhecimento: «quem
sou eu?», «onde estou?», «eu sou o que percebo ser ou sou algo a mais?» Essas
escolas executam certas práticas como o vipassanā. Vipassanā é apenas
uma técnica, existem outras que não são conhecidas pelo público em geral e que
só são ensinadas no momento da iniciação. O propósito dessas práticas é
diminuir as atividades da mente.
O Tantra de «direita» emprega técnicas do yoga: yama, niyama,
āsana, prāṇāyāma, pratyāhāra, dhāraṇā e dhyāna.
O yoga é uma compilação de técnicas do Tantra e do Sāṃkhya. A ênfase
está no trabalho do corpo sutil, os cakras e a kuṇḍalinī. O que
hoje entendemos por kuṇḍalinī e kriyā-yoga é uma síntese do yoga
conforme praticado no Tantra.
O Tantra de «esquerda» aceita os cinco princípios da vida: o pañca-makāra.
Estes cinco princípios são: matsya «peixe», madya «vinho», maithuna
«sexo orientado», māṃsa «carne» e mudrā «grão», mas eles têm de
ser entendidos a partir do ponto de vista espiritual. Se por beber vinho alguém
fosse capaz de alcançar a auto-realização, cada bêbado no mundo seria auto-realizado;
se pela ingestão de carne alguém fosse capaz de alcançar a auto-realização, a
maioria das pessoas no mundo seriam auto-realizadas; se o coito sexual fosse a
única maneira de se auto-realizar, como dizem alguns, então todas as pessoas no
mundo seriam auto-realizadas, incluindo o animais. No entanto, este não é o
caso.
Portanto, esses princípios não devem ser tomados a partir de sua interpretação
literal, mas a partir de seu aspecto simbólico. O corpo desenvolve seu próprio
vinho. É o néctar secretado pelo bindu-cakra e através de práticas
como a khecarī-mudrā, os bandhas e outras mudrās podemos
aprender a transmutar esse néctar. Este é o conceito de vinho.
O conceito de peixe se relaciona ao conceito do prāṇāyāma. O Tantra
diz que apenas dois peixes têm de ser domados. Quem são esses dois peixes? A
respiração e o prāṇa nos canais iḍā e piṅgalā. O controle
da respiração e do prāṇa é considerado uma refeição cujo prato principal
é peixe.
Assim, coisas diferentes foram explicadas no Tantra. Os aspectos práticos
reais, como a relação sexual, o consumo de vinho ou de carne na nossa ignorância,
dizemos que fazem parte do Tantra, pois não somos capazes de compreender o
significado exotérico. Se, no entanto, olhamos sobre o ponto de vista
espiritual, concluímos que o processo vāmācāra é completamente
meditativo.
Então, Tantra, no meu entender, não é senão uma experiência direta das
realidades da vida. É preciso tentar, inicialmente, analisar e compreender a
tradição de que estes sistemas de pensamento vieram e o que eles estão tentando
nos dizer, depois comparar isso com as condições e situações modernas: «será
que é realmente válido?» «meu entendimento está correto?» «o entendimento do
autor está correto e é verdadeiro?» Por um lado nós estamos dizendo que a fim
de evoluir espiritualmente precisamos ter controle da mente, o que levará a
alguma transformação e transmutação das tendências básicas ou vṛttis. Por
outro lado, estamos dizendo que consumir vinho é ótimo; sendo ele tamásico, tudo
bem, o bom mesmo é nos tornarmos pessoas tamásicas etc.
O Tantra enfatiza a consciência experiencial e não uma disciplina imposta,
rígida e idealista. Outros sistemas de pensamento enfatizam uma disciplina assim
com a esperança de que, se as suas convicções são fortes, então no decorrer do
tempo você será capaz de transcender os vṛttis da vida. Se o saṅkalpa-śakti
«o poder da resolução», o iccha-śakti «a força de vontade» e o kriyā-śakti
«o poder da ação» são fortes, então as coisas podem ser modificadas. O desejo
pode estar lá, mas se essas forças não são fortes e poderosos, então essa necessidade
torna-se simplesmente um desejo, como tudo na vida.
Foto: Diógenes Mira «Sahaja Tantra Studio».
Modelo: Jessika Gome «Satya Devī».
0 comentários:
Postar um comentário