Fernando Liguori
A série de artigos «Vida
de Yoga» está sendo escrita para responder inúmeras perguntas enviadas pelos
leitores do blog Yoga Dṛṣṭi. Temas como o propósito do Yoga na vida, a
integração de suas práticas no dia-a-dia de forma equilibrada para que atuem na
mente, corpo e espírito, a relação entre o guru e o discípulo, sādhanā,
disciplina e estilo de vida yogī etc. Nessa direção, o Yoga Dṛṣṭi apresenta o
Yoga na forma de uma medicina sagrada, um remédio em cápsulas a ser tomado
todos os dias. Para nós, Yoga é prática, Yoga é sādhanā, Yoga é estilo de vida,
Yoga é cultura.
Todos nós temos
dificuldade em lidar com as energias negativas de outras pessoas. Por que
sentimos que alguém está nos abusando ou está sendo negativo em relação a nós?
Por que nós reagimos? A principal razão é que as expressões das outras pessoas
afetam e alteram a nossa auto-imagem e, como resultado, nos machucamos. Quando
as pessoas se expressam, nós reagimos. Não estamos preocupados com o fato de serem
positivos ou negativos, porque reagimos de qualquer maneira. Qualquer que
seja a expressão, ela altera o conhecimento e conceito de auto-imagem, nos
levando a sentir rejeição, negatividade, abuso ou maus-tratos.
Vamos considerar o
tema não a partir do ponto de vista tradicional do yoga, mas a partir de
um ângulo diferente. Há uma palavra em sânscrito, svabhava. Bhava
significa «natureza» ou «sentimento» e sva significa «pessoal», «eu». Se
estamos cientes de nossa natureza pessoal, então situações de conflito, de perturbação
mental e emocional, podem ser evitadas. Svabhava é algo muito mais
profundo do que a compreensão normal das atitudes, comportamentos, interações e
reações. Geralmente, nós reagimos e nos identificamos com as expressões das pessoas,
não com a natureza real delas. Em suas expressões externas há uma combinação de
egos, desejos, ambições e até mesmo aspectos positivos e negativos. Nós não
somos capazes de observar o estado real ou interno das pessoas ao nosso redor.
O exemplo de Rāma é
bem vindo. Quando foi exilado por 14 anos, seu irmão Bharata chegou para
levá-lo de volta ao reino de Ayodhyā. Ele veio com um exército inteiro e o outro
irmão de Rāma, Lakṣmaṇa, pensou que Bharata estava vindo para matá-los e ter
certeza de que Rāma nunca seria capaz de recuperar o reino. Mas Rāma disse: «Espere
um minuto. Antes de nos preparar para a guerra, vamos considerar a hipótese de
Bharata não vir com o desejo de nos matar.» Rāma analisado todo o padrão de
vida de Bharata, continuou: «Ele não está vindo aqui para nos matar. Ao
contrário, veio com um propósito diferente.»
Nós vemos
situações muito semelhantes em nossas vidas. No ano passado, quando estava ministrando
um workshop sobre a superação de dificuldades através da meditação, uma aluna
perguntou qual era o propósito de estarmos ali. Era um trabalho dividido em
módulos e alguns alunos já estavam muito cansados no fim do dia. A pergunta que
ela fez foi simples, mas carregada pela sua dificuldade em se locomover e por
sua inabilidade na superação de seus problemas. O volume de sua voz foi tão
alto que os outros alunos foram surpreendidos com tamanha ênfase e podia se ver
em seus olhos uma certa indignação.
Mas naquele
momento algo estranho aconteceu em minha mente. Por um breve instante, todo
tipo de interação que tive com aquela aluna no período de quatro meses passou
pela minha mente como um filme projetado em uma tela. Diferente dos alunos que
estavam presentes, procurei ver a situação de outra maneira. Me convenci de que
ela não estava sendo nem um pouco negativa e que no seu coração um bebê bem
grande clamava por ser escutado. Então sorri e respondi que todos nós iríamos
descobrir. Eu procurei não ouvir suas palavras e reagir a partir delas. Tomei
um rumo diferente e, a partir de sua pergunta, procurei analisar seu svabhava,
sua natureza interior. Não pude ver nada negativo, nenhuma apreensão ou
rejeição.
Temos de levar em
consideração que sejá lá qual for o tipo de comportamento, isso não reflete,
necessariamente, a verdadeira natureza de um indivíduo. Se eu adoecer me
transformo na doença? Se alguém tem um ataque de fúria isso significa que é uma
pessoa «brava», «furiosa»? Momentaneamente sim. Quando o vento sopra a copa da
árvore fazendo as folhas balançarem, o tronco permanece fíme e imóvel no chão. Da
mesma maneira, svabhava é tornar-se consciente do que está acontecendo nas
camadas mais profundas do ser. Através desse tipo de compreensão muitos dos
problemas mentais e emocionais que enfrentamos quando nos deparamos com
situações difíceis na vida podem ser evitados. As pessoas não são tão
negativas quanto parecem ser ou como conseguimos vê-las.
Para conquistar
essa compreensão é preciso treino, trabalho duro sobre nós mesmos. Na medida em
que permanecemos na superfície da mente não há dúvida de que estaremos perdidos
nas intensas tempestades das situação e circunstâncias da vida e as projeções
das pessoas sobre nós. No alto da árvore podemos sentir a intensidade do vento
e o medo da queda. Mas na base da árvore o vento não nos parece tão forte.
Então o que devemos fazer? Temos de sair da superfície da mente e adentrar
em suas profundezas. Da mesma maneira, vivemos o tempo todo na
superficialidade dos acontecimentos do dia-a-dia. Isso significa que devemos
empreender esforços para ver a Realidade por trás das aparências.
Ao observar os
aforismos do yoga e outras escrituras da tradição encontramos algo
único. Os conceitos e práticas de pratyāhāra apresentados nas escrituras
clássicas podem nos auxiliar na descoberta de nosso próprio svabhava.
Quando descobrirmos nosso svabhava estaremos aptos a compreender o svabhava
de outras pessoas. Mas pelo que tenho visto, isso é até mesmo difícil acontecer
no processo meditativo. Mesmo pessoas que praticam meditação por anos a fio
costumam reagir violentamente diante de certas circunstâncias da vida,
apresentando de uma forma ou de outra algum tipo de negatividade. Mas por que,
mesmo após anos de meditação, as pessoas ainda reagem dessa maneira? Porque sua
prática meditativa muito provavelmente não lhes proporcionou conhecimento sobre
suas projeções e expressões. Então, qual é a utilidade da meditação nesse processo?
Existe uma prática
de pratyāhāra em sequência que abrange essa e muitas outras possíveis
situações da vida. Quando falamos que pratyāhāra é a retração dos
sentidos e utilizamos o clássico exemplo da tartaruga, existe uma tendência
quase unanime em entender esse processo como um «desligamento» ou «desconexão
mental». Mas pratyāhāra não é isso. Pratyāhāra é «consciência».[1] Como nos tornarmos conscientes?
O primeiro passo é ampliar a abrangência de nossos sentidos. É fazer com que
todos os nossos sentidos se estendam ao máximo, nos tornando conscientes de
suas inúmeras experiências. É dessa maneira que pratyāhāra começa. Nessa
primeira etapa, ampliamos e estendemos os nossos sentidos em todas as direções,
estando conscientes das reações naturais e espontâneas que ocorrem devido a essa
expansão dos sentidos.
Na segunda etapa
de pratyāhāra ocorre uma harmonização dos sentidos ampliados e
externalizados com o corpo. Na terceira etapa o mesmo ocorre, adicionando as faculdades
da cognição, externalizando-as e internalizando-as. Observar, compreender e
harmonizar ocorre em uma quarta etapa. Na quinta etapa nos tornamos conscientes
das reações instintivas e na sexta procuramos harmonizá-las. Após todos esses
estágios a mente está pronta para entrar no processo de dhāraṇa, a
concentração das energias da mente.
Assim, a fim de
descobrir nossa natureza, harmonizar as perturbações internas criadas devido a
circunstâncias externas e, em seguida, harmonizar os estados que provocam o
desequilíbrio, devemos executar pratyāhāra. Desse modo, podemos
gradualmente nos elevar além das influências negativas.
Conflitos mentais
representam estados internos de desarmonia. Se a mente está harmonizada não existem
conflitos mentais. Por que a mente se perturba? Ela se perturba por conta
das ambições e aspirações que todos nós temos. A mente fica perturbada pelas
nossas necessidades, físicas ou mentais, emocionais ou espirituais. A mente se
perturba quando encontramos pontos fracos na vida, algum tipo de deficiência
mental ou emocional, até mesmo a falta de força de vontade ou falta de clareza na
mente. Assim, temos de ser claros para ver o que realmente está acontecendo,
não apenas nos sentimentos, desejos, ambições, necessidades, gostos e desgostos,
mas na personalidade de uma forma integrada. Através de pratyāhāra é
possível superar qualquer tipo de problema mental, não importa o quão
impossível, simples ou difícil possa parecer. Se pudermos fazer um esforço contínuo,
então definitivamente soluções estarão disponíveis. A escolha é nossa.
Outro método para
superar a negatividade e lidar com as energias negativas é através da fé. Por
favor, não veja a fé como um conceito místico ou religioso. A fé é uma força
que possuímos. Se pudermos reconhecer a fé como uma força e não como um
conceito místico ou religioso, então seremos capazes de lidar com as energias
negativas. A fé nos ensina a fluir e não lutar contra a vida.
Na linguagem da
filosofia, a negação é o resultado de nossa reação a algo. Um pedaço de carne
podre é colocado na nossa frente. Vamos cheirá-lo e a partir desse processo reagimos;
essa reação cria uma negação da experiência em particular. Isso é conhecido
como dveṣa, rejeição, repulsa. Sentimos o cheiro de um perfume agradável
e gostamos da experiência. Isso também é uma reação. Se é bom, nós aceitamos e nos
deleitamos. Isso é conhecido como rāga, atração, apego. O que é
semelhante em ambas as reações? O que acontece na atração e o que acontece na
rejeição? A reação ocorre em ambos. Uma é boa, a outra é ruim.
Se vivemos reagindo
continuamente, então a vida é definitivamente um inferno. Como seres humanos,
temos de ter a capacidade de discriminar entre as reações positivas e
negativas. Nos agarrar a qualquer uma delas irá limitar e nos vincular as
forças da mente, criando um sentimento de apego, não permitindo que a mente
experimente uma liberdade total.
Mahaṛṣi Patañjali em seu Yogasūtra
(II: 33) ensina um método que ele denominou de pratipakṣa-bhāvanam:
[Quando] acorrentado por pensamentos negativos, [seus]
opostos [positivos] devem ser cultivados. [Isto é] pratipakṣa-bhāvanam.
No caminho da
auto-transformação somos açoitados por pensamentos negativos e paixões «vitarka»
devido a velhos hábitos e tendências que criam perturbações e desequilíbrios
internos. Ao invés de ceder a eles ou mesmo racionalizá-los, Patañjali descreve
uma ação direta: o cultivo ou a ponderação sobre pensamentos opostos, pratipakṣa-bhāvanam.
Por exemplo, se você estiver cultivando a honestidade e no seu caminho só
aparecem pessoas desonestas e bem sucedidas, pode vir a pensar negativamente
que apenas praticando a desonestidade poderá conquistar algo de valor na vida.
Isso é vitarka, o lado errado ou negativo do argumento. Quando este
argumento negativo é cultivado na forma de uma resolução constante, cria-se um
desequilíbrio na mente, o que pode desajustar a caminhada do aspirante. Nesta
situação, o oposto da desonestidade, que é a honestidade, deve ser cultivado na
forma de uma ponderação e resolução sobre o assunto. Portanto, quando vier à
mente que a honestidade não é um valor cultivável e que ninguém recebe nada por
ela, você deve estar preparado com um argumento e resolução oposta de que é
somente através da honestidade que poderá ser bem sucedido no caminho
espiritual. Isso se aplica a inúmeros sentimentos, paixões e pensamentos
negativos. Se você sentir ressentimento em relação a alguém, desenvolva
pensamentos de perdão. Se houver medo, cultive resoluções corajosas que
aumentem a confiança em si mesmo.
Para contrariar as
tendências enraizadas de pensamentos negativos, requer-se o uso regular e
diligente do saṅkalpa. Como temos visto nos nossos estudos, a mente é
como um computador que opera segundo sugestões que foram programadas desde a
tenra idade, sugestões danosas que causam sofrimento e infelicidade na vida.
Estas sugestões vêm de nossos pais, amigos, professores, da mídia, símbolos e
valores culturais que permeiam o mundo. O processo de cura interior requer que
cada um de nós enfrentemos todas as emoções e pensamentos negativos de maneira
hábil, sem suprimi-los. Isso nós podemos conquistar com o cultivo do saṅkalpa,
a resolução positiva. Como sugestão, identifique e classifique em seu diário
os pensamentos negativos habituais. Cultive resoluções, afirmações e
auto-sugestões opostas às tendências negativas de sua personalidade. Cultive a
prática consciente dos dez códigos de reprogramação mental e pondere sobre
pensamentos positivos associados a sugestões incisivas. Pratique o perdão e
baikharī-brahmacarya.
Anote todas as
dificuldades e complexos que possam surgir e preserve essas anotações no local
onde executa seu sādhanā. Quando se sentir impaciente e deprimido, vá ao
seu local de prática, execute pratyāhāra um pouco e então leia suas
anotações e resoluções. Isso lhe trará paz mental e removerá os sentimentos de
negatividade e dúvida.
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