Fernando Liguori
As upaniṣads são consideradas ou estão contidas nas escrituras
do Vedānta. A palavra upaniṣad é o nome de um assunto
determinado, o autoconhecimento, assim como as palavras geografia e
biologia são nomes que denotam assuntos específicos. Então, o significado da
palavra upaniṣad é autoconhecimento.
A palavra
por si só é composta por dois prefixos (upa e ni) e uma palavra sat ou sad, da raiz ṣad. Esta raiz tem um significado triplo: desgastar (visaranam); por fim a (avasadanam) e atingir ou conhecer (gamanam). A palavra sat é o agente da ação indicada por sua raiz e, portanto, significa aquilo que
se desgasta, que se põe um fim e que faz você alcançar, atingir ou conhecer.
Desde que
a raiz ṣad tenha esses três
sentidos, precisamos ver se todos os três são aplicáveis aqui ou apenas um ou dois.
Achamos que todos os três se aplicam, como é evidenciado pela palavra ṣat por si só e pelos dois prefixos upa e ni. O prefixo
ni significa exatidão, aquilo que é bem apurado.
Por isso, conhecimento é chamado ni e
o prefixo upa significa aquilo que
está mais próximo.
O que está
mais próximo de si mesmo é o «eu», o ātma, e sobre esse «eu» existe uma confusão.
O que eu tenho que saber para remover esta confusão não está longe de mim, porque
não é uma outra coisa além de mim mesmo e a sentença «mais próximo» aqui é usada
pela falta de uma palavra melhor. Então, os dois prefixos juntos, upa-ni, significam o conhecimento
preciso de si mesmo.
Este conhecimento
destrói as aflições de alguém, o que significa que elas se desintegram, fracassam
e não retornam, quer nesta vida ou em qualquer outra. O autoconhecimento as remove
por bem e isso ocorre porque a raiz da aflição é a ignorância sobre si mesmo. Então,
o autoconhecimento remove a causa da aflição tão completamente que coloca um ponto
final ao efeito também.
Assim como
uma árvore que foi cortada, não crescerá de novo pois suas raízes foram completamente
destruídas e a aflição não voltará, uma vez que a sua causa, que era a ignorância
de si mesmo, foi removida pelo autoconhecimento.
A ignorância
do fato de que o Ser ou Eu (ātma) é o todo (Brahman) é a causa de todas as
aflições e essa ignorância vai na esteira do conhecimento. Como isso acontece? O
conhecimento de si mesmo permite que se reconheça o fato de ser um Brahma (brahma-gamayati) e este reconhecimento é o próprio
conhecimento em si.
O autoconhecimento,
então, é o assunto que se chama upaniṣad, encontrada na última parte dos
Vedas. A palavra Vedānta indica a localização da matéria em questão, com
anta significando fim. Assim, Vedānta é upaniṣad. A palavra
upaniṣad em si revela o desejo de buscar esse conhecimento, porque seu resultado
é o fim da aflição.
O autoconhecimento é algo que
se pode adquir – e para que isso ocorra é necessário que haja um meio de conhecimento
(pramana) e este meio de conhecimento é o Vedānta, que está na parte
final dos Vedas, cujo assunto em destaque é a upaniṣad, o autoconhecimento.
O assunto por si só se torna
o nome dos livros de Vedānta – as upaniṣads. O plural é usado porque
há quatro Vedas e, portanto, quatro antas ou fins. Coletivamente, eles são
referidos como upaniṣad, mas, com referência ao assunto em questão, há apenas
um. Não existe plural, só há upaniṣad.
As upaniṣads estão na
forma de vários diálogos e cada diálogo é chamado upaniṣad, sendo que o assunto
é o mesmo. Uma vez que o assunto tratado é o mesmo, cada livro é também chamado
upaniṣad, depois de seu tema, assim como um livro sobre a história
brasileira tem o título História do Brasil. Aqui, também, um livro sobre
o autoconhecimento é chamado de autoconhecimento, que é o significado de upaniṣad.
A Yogacūḍāmaṇi-upaniṣad
Yogacūḍāmaṇi
é a Jóia da Coroa do Yoga. Cūḍāmaṇi é a junção de duas palavras: cūḍā
que significa coroa e se refere também ao tufo de cabelo usado na parte de trás
da cabeça pelos sacerdores brâmanes; maṇi que significa jóia. A Yogacūḍāmaṇi
é um texto único e conciso que compreende cento e vinte e um mantras que
tratam da prática do kuṇḍalinī-yoga como meio para se atingir a
realização proposta pela filosofia do Vadānta. O autor é desconhecido e
o texto é muitas vezes associado ao Sāma-Veda. Ele foi redigido por
volta dos Sécs. XVI e XVII, período em que a tradição tântrica renascia dos
escombros sociais, ganhando notoriedade e popularidade.
A Yogacūḍāmaṇi é um texto no
qual não existe uma demarcação clara entre os sistemas do haṭha-yoga e kuṇḍalinī-yoga.[1]
Alguns acadêmicos tentaram relacionar o conteúdo prático desta escritura com o haṭha-yoga,
entretanto estas práticas estão no campo do kuṇḍalinī-yoga, pois tratam
diretamente do despertar dos prāṇas, nāḍīs, cakras e a kuṇḍalinī.
Nos tempos antigos, quando os videntes das upaniṣads exploravam a
prática e a doutrina tântrica, o kuṇḍalinī-yoga compreendia todas as
práticas do haṭha-yoga, exceto as seis ações tradicionais de
purificação, os ṣaṭ-karmāṇi.
O haṭha-yoga foi considerado
um sistema de purificação física e prânica, enquanto que o kuṇḍalinī-yoga
foi considerado um sistema esotérico que envolve o despertar das energias
psíquicas latentes e esteve restrito a prática oculta dos adeptos.
Gradativamente, ao longo do tempo, os āsanas, prāṇāyāmas, mudrās
e bandhas, todos componentes do kuṇḍalinī-yoga, foram absorvidos
no sistema do haṭha-yoga por conta de sua natureza física. A relação
entre o haṭha e o kuṇḍalinī-yoga não foi reconhecida
frequentemente pelos acadêmicos, portanto, a ênfase prânica e psíquica da
prática foi gradualmente perdida. A Yogacūḍāmaṇi é, assim, uma fonte
importante para literatura yogī que nos relembra o propósito esotérico
intrínseco as práticas do kuṇḍalinī-yoga que foram consideradas parte do
haṭha-yoga.
Um esboço do texto
O texto se inicia com os seis
membros do Yoga: āsana, prāṇāyāma, pratyāhāra, dhāraṇā,
dhyāna e samādhi. Segue descrevendo os seis cakras, os
dezesseis ādhāras (suportes), os três lakśyas (objetivos) e os
cinco vyomas (espaços) do Yoga. Esta parte do texto tem forte
afinidade com a ciência do Tantra e lida em profundidade com os cakras
inferiores – mūlādhāra, swādhisṭhāna e maṇipūra, que não
são citados com frequência em outras upaniṣads ou textos
clássicos do Yoga por conta de sua relação com a
natureza instintiva do homem. Ênfase especial é dada a origem, localização e
função das dez nāḍīs ou canais de energia principais,
incluindo iḍā, piṅgalā e suṣumṇā. Os prāṇa-vāyus são discutidos em detalhe, assim como uma relação entre o jīva, a alma e os três guṇas que constituem a prakṛti. O texto segue provendo uma descrição do ajapa-gāyatrī, um
conhecimento arcaico védico e das upaniṣads, demonstrando uma integração harmoniosa destes
dois sistemas.
Seguindo
essa detalhada discussão acerca da fisiologia do Yoga e do ajapa-gāyatrī, a kuṇḍalinī é descrita junto ao seu caminho, o método para
despertá-la, a diéta necessária e as observações disciplinares. Mais a frente o
texto lida com a teoria dos bindus branco e vermelho, o rajas e o shukla, que representam as forças vitais e da cosciência ou masculinas e
femininas. Este é um conceito tântrico importante que completa a doutrina por
trás da kuṇḍalinī e que foi omitido deliberadamente de muitos textos yogīs posteriores, devido a sua associação com os aspectos sexuais do Tantra. O
processo de retenção e reversão dos bindus são descritos abertamente, com clareza, assim como as
práticas relevantes utilizadas nos vários estágios do processo. Neste contexto,
diversas mudrās e bandhas importantes tais como a khecarī, vajrolī e mahā-mudrā e mūla,
uḍḍīyana e jālaṃdhara-bandha são descritos com riqueza de
detalhes.
A partir deste ponto o texto apresenta uma inclinação ao Vedānta,
discutindo os estados de consciência em relação ao pranava ou auṃ
e como Brahman se manifesta na forma do pranava. O significado e a
simbologia do pranava são discutidos em detalhes, de acordo com o
sistema de filosofia e prática do Vedānta. A discussão continua relacionando as
três deidades superiores, as três śaktis ou poderes e os três lokas
ou dimensões da existência, com as três letras «A», «U» e «Ṃ», que juntas
formam o mantra auṃ. É destacada a importância do pranava como
disciplina meditativa ou upāsana, o que leva o praticante a esfera sutil
do nāda-yoga que é explanado de maneira rica e consistente.
O texto segue dando ênfase ao controle e a retenção do prāṇa, o que
resulta em longevidade. A fim de se controlar e reter o prāṇa é
necessário a prática do prāṇāyāma. Métodos como o pranava-prāṇāyāma,
candra-bhedana, sūrya-bhedana, nāḍī-śodhana e a kumbhaka
são descritos com seus significados esotéricos ocultos e formas de
concentração, o que não é encontrado em outras upaniṣads e textos do Yoga.
A escritura volta a abordar os membros do Yoga, seus benefícios e
progressões. É esperado que neste estágio do texto o praticante já tenha
atingido certa proficiência nas práticas yogīs, deixando de lado a
tendência intelectual exclusivista.
A Yogacūḍāmaṇi é um manual avançado de prática espiritual que serve
tanto a adeptos avançados quanto a praticantes iniciantes. Ela trata do
despertar da kuṇḍalinī em sua forma mais pura e original, antes da
proliferação a literatura yogī moderna. Mantra a mantra, o
texto indica meios de transformação interior adequados, o que leva o aspirante
aos aspectos mais profundos da prática do Yoga e sua culminação na
expansão da consciência e auto-realização. Portanto, o texto se torna a prova
prática e experimental da compatibilidade entre o Yoga e o Vedānta.
[1] Quando nos referimos ao kuṇḍalinī-yoga, não falamos do sistema
de yoga criado pelo Yogī Bhajan e que recebeu o mesmo nome. Kuṇḍalinī-yoga,
conforme os ensinamentos dessa escritura, refere-se ao laya-yoga, cujo
foco é o despertar da kuṇḍalinī e sua ascensão através dos cakras.
Veja os livros Kundalini Yoga de Śrī Swāmi Śivananda Saraswatī e Kundalini
Tantra de Śrī Swāmi Satyānanda Saraswatī.
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