Swāmi Satyānanda Saraswatī
Texto retirado do livro Meditations From the Tantras, Yoga
Publications Trust, 2004.
Embora o Yoga
esteja mais preocupado com a prática do que com a teoria, a ideia básica dos
aspectos filosóficos ajudará o praticante a saber o que ele está tentando fazer
e como atingir estados meditativos avançados. O leitor verá que a filosofia
do Yoga, embora contenha grandes insights, está sempre concernida
em como o meditador poderá proceder para conquistar a autorrealização. Muitas
filosofias, principalmente as variadas filosofias ocidentais, têm a tendência
de se perderem em suas próprias palavras. Elas querem fazer com que suas
concepções se ajustem as circunstâncias, pintando uma imagem agradável da
realidade. Os filósofos se tornaram tão apegados a suas palavras que eles fazem
delas uma imagem exata e representativa a verdade. Eles não vão a frente na
concepção de que suas teorias não passam de um modelo de universo, da mesma
maneira que a planta de uma construção somente é a planta da construção, mas
não a construção em si. As filosofias orientais, particularmente o Yoga,
o Budismo etc., aceitam a ineficácia de suas ideias e tentam demonstrar ao
praticante como realizar a verdade por meio de seus próprios esforços. Elas
concordam que o entendimento verbal ou escrito da imagem da realidade não
expressa à verdade em si. A filosofia do Yoga aplica isso todo o tempo. O
Yoga não está destinado às pessoas que gostam de brincar com arranjos de
palavras, mas sim aos práticos.
A primeira necessidade de
uma filosofia útil é que ela deve se adequar a vida humana. Ela deve formular
ideias ou tentar jogar alguma luz sobre a condição humana e como fazer com que
a humanidade transcenda o sofrimento e a dor. Buda fez isso, se recusando em
responder indagações acerca da natureza de Deus, não porque ele não tinha opinião,
mas porque ele não considerou a questão relevante a condição humana. Ele
poderia ter respondido: sim, Deus existe ou não, Ele não existe.
Em todo caso seus discípulos não iriam ganhar nada com a resposta. Elas teriam
sido apenas palavras e por conta disso não causariam nenhuma mudança no
interior deles. O objetivo principal de Buda era ajudar as pessoas a
transcender o sofrimento da condição humana; na medita em que o ser humano
transcende sua condição, as respostas as suas perguntas brotam de seu interior
como se não houvesse a necessidade de se fazer tais indagações.
Os
kleśas
Como no Budismo, podemos
dizer que um dos objetivos do Yoga também é diminuir ou aplacar o
sofrimento do homem para que seus aspectos espirituais revelem-se por si
mesmos. O Yoga especifica que existem causas definidas para a dor e o
sofrimento humano. Essas causas foram classificadas e nomeadas de kleśas
e são cinco ao todo. Elas não se baseiam em teorias obscuras, mas através do
estudo cuidadoso e prático da natureza humana. Estes cinco kleśas ou
aflições foram postulados por sábios que os experimentaram e os transcenderam;
portanto, eles eram capazes de ver o todo e não apenas as partes. Ao contrário
deles, somos tão prisioneiros das circunstâncias que nos causam
infelicidades que não conseguimos ter a mesma visão do todo e assim não
percebemos a inteireza de nossa consciência. O sofrimento humano é causado
por:
1. Avidyā (ignorância, falta de
conhecimento espiritual, inconsciência da realidade);
2. Asmitā (o ego);
3. Rāga (apego);
4. Dveṣa (rejeição, repulsão);
5. Abhiniveśaḥ (desejo de fazer parte,
medo da morte, apego a vida).
Os kleśas não
podem ser vistos como entidades separadas: um sempre leva ao próximo. A
ignorância (avidyā) é a raiz de todas as aflições. Por conta disso, cada indivíduo
pensa apenas em si mesmo. Ele se torna consciente de sua identidade, de seu ego
(asmitā) e automaticamente se sente diferente das outras pessoas e
objetos que o cercam. Ele se torna o ego se movendo entre as pessoas e
objetos. De forma grosseira ou sutil, tudo o que está ao seu redor se torna
subserviente a ele, a fim de trazer mais conforto, felicidade etc. Dessa
maneira, os gostos (rāga) e desgostos (dveṣa) nascem. Ele é atraído
pelas pessoas que o fazem se sentir bem, feliz, que inflamam o seu ego. Já as
pessoas ou situações que lhe fazem sentir-se triste, infeliz, desconfortável
etc., tornam-se objetos de repulsão, desgosto. Algumas situações ou pessoas
trazem tanto a sensação de gostos e desgostos em circunstâncias distintas;
outras vezes, não existe nenhuma das sensações, pois os objetos podem ser
neutros. Mas nas devidas condições, contudo, até as situações ou pessoas
neutras podem se tornar facilmente em objetos de apego ou repulsa. Do apego aos
objetos e pessoas nasce o apego profundo a vida – ou as circunstâncias, ao
grupo – e a aversão obsessiva a morte. O indivíduo não quer perder a sua
identidade ou os eventos ou pessoas que alimentam o seu ego. Desejando fazer
parte do grupo, perde sua verdadeira identidade.
Os
kleśas causam sofrimento porque fazem com que o indivíduo se esqueça de si
mesmo e se identifique com os objetos, pessoas ou eventos transitórios da vida. O indivíduo se identifica com o corpo, com a mente, com o
ego e por conta disso, consciente ou não do fato, sempre está em um estado de
infelicidade porque sabe que tudo isso desaparecerá no momento da morte. Ele
não se identifica com o Ser interior. É o mesmo com os objetos que lhe agradam:
eles não são permanentes e irão desaparecer com o tempo. Eles não mais lhe
trarão satisfação. E quanto aos desgostos? Bem, é claro que eles causam uma
infelicidade superficial, mas não alimentam o ego com os prazeres do homem. Só
que os desgostos não são diferentes dos gostos, são apenas lados opostos de uma
mesma moeda. Estamos acorrentados tanto pelos gostos quanto pelos desgostos.
Talvez haja alguma verdade no ditado que diz: o seu maior amor é o seu maior
desamor. A pessoa que odiamos pode facilmente, sob as devidas
circunstâncias, se tornar a pessoa que amamos.
Os kleśas
continuamente causam dor e sofrimento porque o homem tenta proteger sua
presente condição. É apegado demais ao carro novo. Alguém o rouba e fica triste
e deprimido. Alguém lhe diz que seu trabalho não é bom o suficiente e por conta
disso fica infeliz porque o seu trabalho é uma extensão sua, parte de seu ego.
E isso é assim em todas as coisas da vida. Se o leitor refletir sobre todas as
coisas que faz e na dimensão de sua infelicidade, seja ela permanente ou
temporária, concluirá que os cinco kleśas cobrem toda extensão do
sofrimento humano.
A palavra vāsanā
literalmente significa perfume, mas também pode ser traduzida como desejo.
Vāsanās são os desejos que nos atraem aos objetos ao nosso redor para
que possam ser satisfeitos. Se analisarmos com cautela todas as nossas
atividades físicas e mentais, concluiremos que elas são influenciadas ou
estimuladas pelos desejos, de uma forma ou outra, às vezes sutilmente, às vezes
de forma grosseira. São os impulsos por trás de cada pensamento e ação
humana. Isso significa que a mente e o corpo sempre caminham na direção em
que os desejos latentes do indivíduo possam ser satisfeitos. Nesse caminho, a
consciência que ilumina a mente também se encontra completamente emaranhada, forçada
a seguir a incessante busca pela satisfação dos desejos. Os desejos não podem
ser satisfeitos todos ao mesmo tempo e se apresentam quando a oportunidade
apropriada aparece.
Quais são as causas
destes desejos? A causa são os kleśas. Se não existir os kleśas
não há desejos. É a atração e repulsão aos objetos, o sentido egoidade, o
apego à vida e a ignorância da realidade que causa todos os desejos. Como
esses desejos adversos influenciam a prática meditativa? Eles
insistentemente distraem a mente do objeto de meditação. Eles tentam
fazer com que a mente vagueia aqui e ali, prendendo-se aos eventos externos que
precisam ser satisfeitos. Uma mente desfocada é incapaz de se concentrar e
portanto, incapaz de meditar.
É impossível remover os kleśas
completamente até que a autorrealização seja conquistada. O melhor que se pode
fazer é gradativamente e sistematicamente reduzi-los. Isso pode ser feito de
várias maneiras e muitas delas são demonstradas neste curso. Comece a meditar
em suas manifestações e descubra por si mesmo que elas provocam infelicidade e
sofrimento. Dessa maneira estará mais consciente do mecanismo por onde operam
para trazer este sofrimento. De posse deste conhecimento, poderá dar passos
definidos para remoção dos gostos e desgostos, egoísmo etc., colocando em
prática os métodos meditativos deste livro.
Ao mesmo tempo, a
identificação incorreta com o complexo corpo-mente pode ser removida
seguindo-se os aconselhamentos da seção auto-identificação no Capítulo 5.
Isso ajudará na redução do sentido de egiodade e auxiliará a identidade
individual estar e concordância com a realidade permanente, o Ser. Da mesma
maneira, os yama e niyama descritos no próximo capítulo podem ser
praticados para aplacar os kleśas. Karma e bhakti-yoga
também são métodos excelentes para reduzir a influência dos kleśas na
vida.
Na medida em que se
avança no caminho espiritual, os kleśas automaticamente se tornam um
fator de influência menor. O leitor pode pensar que pela extinção dos kleśas
a vida perderá seu sabor e quase completamente ficará sem significado, pois os
gostos, desgostos etc., são características que dão significado a vida. Sem
elas, parece que a vida não tem sentido. Isso, é claro, comprova a verdade
por trás do quinto kleśa, que somos superapegados a vida como ela é, ou melhor,
como nós a percebemos. Contudo, em resposta a essa questão, deve ser notado
que a forma pela qual conhecemos e experimentamos o mundo é uma maneira
grosseira de se viver. Com o progresso e evolução no caminho espiritual,
essa verdade vai gradativamente se desvelando e a percepção de que observamos o
mundo através de um estado de consciência advém e isso não se compara a
essência mais sutil da vida que vagarosamente brilha por si mesma. Neste caminho
concluímos que os apegos à vida são de alguma maneira apegos que não merecem o
apego, não valem a pena. Dessa maneira os kleśas iniciam o processo de
redução.
Tradução livre de FernandoLiguori.
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