Swāmi Satyānanda Saraswatī
Texto tirado do livro «A Systematic Course in the Ancient
Tantric Techniques of Yoga and Kriya», Yoga Publications Trust, 2004.
A prática meditativa que iremos descrever agora é a entoação do mantra auṃ. Nós poderíamos escrever uma
enciclopédia sobre o assunto, mas pela concisão super-potente do mantra, procuramos reduzir a verborréia
prolixa ao máximo. Se muita coisa pode ser dita e inferida sobre o assunto em
poucas palavras, não existe a necessidade de causarmos constipação mental
produzindo explicações super-elaboradas. Na verdade, o essencial a ser dito é:
A-A-A-A-A-A-U-U-U-U-U-U-M-M-M-M-M-M.
Esta prática é muito simples de se explicar e os benefícios e a
experiência que sua execução proporciona são muito profundos. O mantra auṃ é o rei dos mantras. A experiência do significado do mantra
nos leva automaticamente a compreensão total de todos os outros mantras, que são, geralmente, limitados
por sua intenção dirigida a pessoas ou propósitos específicos. Auṃ, por outro lado, não é específico e
pode ser praticado por qualquer pessoa.
O mantra auṃ foi o som percebido pelos antigos ṛṣis (videntes) nos mais elevados
estados meditativos. É por esta razão que a consciência contínua e intensa no auṃ pode levar o aspirante espiritual
aos mesmos estados em que os antigos constataram o poder deste mantra.
Auṃ na Mandukya-Upaniṣad
A Mandukya-Upaniṣad é uma
escritura vastamente conhecida que trata apenas do propósito e significado do auṃ. Ela diz: A sílaba auṃ é o universo. É Brahman (o absoluto). É o tempo –
passado, presente e futuro – e aquilo que transcende o tempo. Ela continua:
O Ser, que é um com auṃ, possui três
aspectos e além destes três está o indefinido... o quarto.
A escritura continua a apontar significados para os três aspectos
diferentes do auṃ, assim como sua
relevância em um todo conciso. Nós procuramos sumarizar esses significados a seguir,
tanto em níveis macrocosmicos quanto microcosmicos:
É o mantra cósmico auṃ que une a existência limitada com a
ilimitada. É o auṃ que funde o micro
no macrocosmo, o Ser individual com o Ser universal. O auṃ atua como uma ponte. O texto conclui: O quarto, o Ser, é auṃ. Ele é inexprimível e está além da mente. Nele,
todo o universo está contido... seja lá quem conheça o auṃ, o ser, se torna
Ser.
Esta curta escritura de doze versos apenas traz o conhecimento arcaico dos
antigos videntes acerca do mantra auṃ.
Contudo, enfatizamos que é importante não se apegar aos conceitos e teorias
acerca do auṃ, pois seu significado
real é impossível de se descrever em palavras. Todas as teorias escritas sobre
o tema são muito superficiais, são meras palavras que, embora tragam alguma
informação, na realidade destorcem o significado real. As letras A-U-Ṃ
representam, assim diz a tradição, Brahma (o criador), Viṣṇu (o sustentador) e
Śiva (o destruidor), bem como inúmeros outros significados. Mas nós sustentamos
que o real significado de auṃ somente
pode ser conhecido pela experiência direta. E mesmo após a experiência, uma
pessoa simplesmente não poderia descrever o que realmente é o auṃ... ela se torna incapaz de descrever
o que experienciou. Somente no silêncio ela é capaz de realizar sua
compreensão.
Microcosmo
|
Macrocosmo
|
Estado de experiência
|
A
Corpo físico
|
Universo material
|
Estado desperto:
percepção apenas do exterior através dos sentidos.
|
U
A mente
|
Mente cósmica
|
Estado de sonho:
percepção das impressões mentais.
|
Ṃ
Consciência intuitiva individual
|
Consciência do substrato universal
|
Sono profundo:
experiência da bem-aventurança e do conhecimento revelado.
|
AUṂ
Ser (ātman)
|
Brahman
|
Quarto estado (turīya): além de toda
conceitualização.
|
Outras escrituras de
referência
Existe um grande número de escrituras indianas que mencionam o mantra cósmico auṃ. Todas elas abordam o assunto de forma bem entusiasmada. O que
se segue são algumas citações que selecionamos:
Aqueles que buscam a iluminação
deveriam refletir sobre o som e o significado do auṃ. Auṃ é o Brahman
indestrutível. Auṃ é o arco, o ser
individual é a flecha e Brahman o alvo. Quando a flecha é lançada pelo arco
caminha em direção ao alvo. Desta mesma maneira, o sādhaka [aspirante espiritual] deveria refletir sobre o auṃ e se fundir com Brahman.
Dhyānabindu-Upaniṣad
O fogo, potencialmente presente na
lenha, não é visto até que um graveto seja friccionado contra o outro. O Ser é
como o fogo; ele é realizado pela constante consciência no sagrado auṃ. Deixe que seu corpo seja o graveto
que é friccionado contra o outro graveto que é auṃ. Dessa maneira você irá realizar sua verdadeira natureza mais
oculta, assim como o fogo, em um sentido, está oculto na lenha.
Śweteswatara-Upaniṣad
Auṃ é o som sagrado do universo. É o som
do Ser.
Maitri-Upaniṣad
Auṃ é mencionado em inúmeras outras
escrituras da tradição do Yoga como a
Bhagavadgītā, o Yoga-Vaśiṣṭha e muitos outros textos tântricos.
Auṃ não está confinado aos sistemas
espirituais da Índia. Ele é encontrado na fé islâmica na forma modificada do Amin e na religião judaico-cristã na
forma do Amém. Não é preciso ter
muita imaginação para ver que estes mantras
vêem da mesma raiz. É dito nas escrituras antigas da Índia que o auṃ foi a causa primordial do universo
material, o poder de Brahman (o absoluto) através do qual o universo foi
criado. Auṃ é a śakti do Tantra. No
evangelho segundo São João, o primeiro versículo diz: No início foi a palavra (auṃ), a palavra foi feita por Deus (Brahman) e a palavra era Deus.
Isto está completamente em conformidade com o que foi declarado pelos
antigos videntes, registrado para posteridade nas Upaniṣads e outras escrituras da Índia. Compare a passagem bíblica
acima com a seguinte citação da Kaṭha-Upaniṣad:
A palavra (auṃ) é verdadeiramente
Brahman. Ele é o mais elevado. Quem conhece seu segredo e lhe presta adoração,
rapidamente atinge o supremo objetivo e conhece todas as coisas.
Portanto, auṃ é um mantra universal. Para conhecer seu real
significado, o melhor a se fazer é começar entoá-lo, ao invés de se encher de
informações que podem, no fim, iludir e não iluminar.
Pronúncia
Auṃ pode ser entoado de maneira lenta ou
rápida. Cada entoação tem seu objetivo e você deveria praticar ambas no intuito
de descobrir qual o método de vocalização de sua preferência. Por exemplo,
quando entoado rapidamente, pode ser usado como um poderoso método de sincronização
com as batidas do coração. Dessa maneira, o auṃ
pode ser sentido ressoando por todo o corpo em harmonia com o ritmo natural do
coração. Sob estas circunstâncias, a entoação do auṃ se torna espontânea. Muitos praticantes visualizam o símbolo do
auṃ sendo emanado do coração. Outro
método excelente é coordenar a entoação do auṃ
com o pulsar do ponto entre as sobrancelhas. Este é um método poderoso de se
induzir a introspecção, o relaxamento e a meditação. A entoação rápida do auṃ deve ser praticada mentalmente e não
verbalmente, pois a entoação alta (verbal) irá suprimir a percepção das batidas
do coração ou a pulsação do ponto entre as sobrancelhas.
Se o auṃ é entoado de maneira
lenta, pode ser prolongado por muitos segundos, dependendo da capacidade de
cada indivíduo. Deve haver uma pronúncia bem definida de cada uma das letras
A-U-Ṃ, com uma gradual transição de uma para outra. A letra a é pronunciada como ah ou a na palavra pau. A letra
u é pronunciada como oo na palavra iodo. A letra m não é
sonoramente emitida pelos movimentos dos lábios como usualmente se faz. Ao
contrario, ela é vibrada como um zumbido: m-m-m-m-m-m.
Este zumbido pode ser prolongado na medida da capacidade individual, mas
normalmente o m deveria gradualmente
diminuir sua vibração no fim da entoação.
A entoação longa do auṃ pode ser
tanto mental quanto verbal, embora para maioria dos propósitos a entoação
verbal seja preferida. Isso se aplica particularmente aos iniciantes, pois a
entoação alta ou em grupo é mais eficiente para acalmar a mente ansiosa.
Portanto, a entoação verbal do auṃ é
mais adequada para a maioria das pessoas, pois a mente humana se encontra em um
contínuo estado de conflito e tumulto. Em outras palavras, a entoação verbal do auṃ confina e direciona a atenção da mente. Na
medida em que o praticante é forçado a se concentrar no som e na pronúncia do auṃ, a mente tende a se esquecer de suas
preocupações e ansiedades casuais, bem como as distrações mentais.
Na medida em que você progredir na meditação, pratique com mais
intensidade a entoação mental, pois ela é mais efetiva na condução da
introspecção, uma vez que sua mente se encontra razoavelmente relaxada. Uma
maneira excelente de se praticar é iniciar a entoação verbal (pelo maior tempo
possível) e depois convertê-la em entoação mental. Este é um método sistemático de recolhimento da consciência do mundo
exterior para dirigi-la ao interior com a finalidade de se explorar as camadas
mais profundas da mente.
O auṃ deve ser pronunciado, seja
mental ou verbalmente, de forma harmônica. Seu som deve vir espontaneamente,
sem esforço. É através do som contínuo e melodioso que a mente se torna
relaxada. A Dhyānabindi-Upaniṣad diz:
Como o fluxo contínuo do filamento do
óleo e como a vibração do sino. Essa é a maneira de se pronunciar o auṃ e a
maneira de realmente conhecer o significado dos Vedas.
Consciência
Esteja consciente dos dois pontos abaixo quando entoar o auṃ:
1. O som, seja verbal ou mental;
2. Reflexão sobre o significado do auṃ.
Manter a consciência nos dois pontos acima pode ser um pouco difícil logo
no início, mas se conseguir com o tempo executar essa tarefa, poderá colher os
melhores benefícios de sua prática. Se desejar, pode estar consciente do que se
segue durante a prática:
·
No som combinado com seu
significado;
·
No som combinado com a
concentração no símbolo;
·
Concentração no símbolo
combinada com a reflexão sobre seu significado.
Se você pratica trāṭaka
combinada com auṃ, então a imagem
pode ser interna ou externa, dependendo da sua capacidade de visualização. A
concentração interna (antar-trāṭaka)
no símbolo do auṃ é considerada a
melhor, mas é um pouco difícil para o iniciante por sua dificuldade em manter
uma imagem estável por um longo período de tempo.
Você pode combinar antar e bahir-trāṭaka com a entoação do auṃ. Caso queira utilizar uma imagem do auṃ para este propósito, escolha uma que
lhe chame mais atenção ou, se preferir – o que é muito melhor –, pode desenhar
sua própria imagem. Contudo, ela não deve
ser muito grande, pois o objetivo é direcionar o foco da consciência sobre um
campo limitado de atenção.
Se seu objetivo é direcionar a consciência para imagem interna do auṃ, então pode fazê-lo projetando-a na
tela negra na frente de seus olhos fechados (cidākāśa) ou no centro do coração (hṛdayākāśa) como sugerido pela Dhyānabindu-Upaniṣad:
Concentre o auṃ no centro do coração como
se ele fosse uma vela acesa do tamanho de seu polegar. Tenha certeza de que
irá manter a consciência durante a entoação do auṃ.
Mas não se veja obrigado a conjugar a prática de trāṭaka com a entoação do auṃ.
Se preferir, apenas esteja consciente do som. Esse é um método poderoso que
rapidamente alivia a tensão na mente.
Entoando o mantra auṃ
Muito pouco é necessário ser dito a partir daqui, pois a prática é muito
simples e as ponderações mais relevantes nós já explicamos. O que se segue é
uma breve descrição prática de consciência no som do mantra. Se preferir, mantenha concentração integrada no símbolo do auṃ e na reflexão de seu significado.
Técnica
Sente-se confortavelmente em uma
postura meditativa e feche os olhos.
Comece a entoar o auṃ, seja de forma rápida ou lenta.
Se for conveniente, entoe em voz alta.
Tente se manter completamente
consciente do som do auṃ. Dissolva
todo seu ser no som do auṃ.
Deixe que o som emane de todo seu ser.
Sinta todo seu corpo e mente ressoando
em harmonia com o som.
Imagine que você é simultaneamente
emissor e receptor do mantra auṃ.
Você é como uma estação de rádio.
Esteja completamente consciente do auṃ (pausa
grande).
Interrompa a entoação do auṃ e esteja consciente da pulsação no
ponto entre as sobrancelhas.
Quando conseguir detectar esta
pulsação, sincronize-a com a entoação mental do auṃ.
Esteja consciente do som interno do auṃ no ponto entre as sobrancelhas,
vibrando em harmonia com sua pulsação (pausa).
Inspire e expire. Retome a consciência
do exterior. Finalize a prática entoando auṃ
três vezes, de maneira lenta e prolongada.
Duração
Muitas pessoas praticam essa técnica simples e poderosa por horas. De
fato, os praticantes tentam manter a consciência na entoação mental do auṃ continuamente, mesmo que estejam
trabalhando, se divertindo, comendo ou dormindo. Sob essas circunstâncias, uma
pessoa pode experimentar estados profundos de meditação. Pratique quanto tempo
tiver disponível.
Reflexão
Este é um método jñāna-yogī e
pode ser praticado por pessoas que possuem boa concentração e refinada
determinação. Se você deseja realmente conhecer a profundidade do auṃ, por este método poderá fazê-lo.
Pode levar algum tempo, mas o significado logo lhe será revelado. Ele pode
surgir como o estrondo de um trovão ou um impacto que quebra a barreira do som.
Quando conhecer seu significado através da experiência pessoal, então todo seu
ser irá se modificar, pois você conhecerá o impossível.
Benefícios
Os benefícios são profundos. Este é um dos métodos mais poderosos para se
relaxar o corpo e a mente. Como tal, ele rapidamente traz clareza e paz mental
e ainda auxilia na prevenção e alívio de desordens psicossomáticas. Quando se
sentir tenso, chateado, furioso, deprimido etc., entoe auṃ. Essa prática simples é capaz de promover estados meditativos
avançados.
Integração com outras
práticas meditativas
A entoação do auṃ pode ser
conjugada com inúmeras técnicas meditativas. De fato, toda prática meditativa deveria começar e terminar com a entoação do auṃ.
Esta é uma importante parte do kriyā-yoga,
onde ele é combinado com técnicas yogīs.
Tradução livre de Fernando Liguori.
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