Fernando Liguori
O espírito da tradição yogī nos
lega que, para se atingir os mais elevados ideais de transcendência espiritual,
necessitamos daquilo que se chamou nas primeiras Upaniṣads de ideal de
sacrifício. Essa palavra, sacrifício,
como hoje a concebemos, está muito longe de seu profundo significado, conforme
compreendido pelas sociedades antigas.
É muito difícil para mente comum ocidental conceber a ideia de sacrifícios
humanos em larga escala, como acontecia entre os maias, astecas e nos
primórdios da civilização védica na
Índia.1 No entanto, uma compreensão acerca do verdadeiro significado
deste tipo de sacrifício ritual é importante para um entendimento profundo do
ideal yogī de autotranscendência que floresceu junto as
primeiras Upaniṣads.
Consideremos, por um momento, a cultura maia. Eles acreditavam que a ordem
cósmica poderia ser restaurada ou mantida pelo derramamento de sangue,
especialmente de nobres e guerreiros valentes vencidos em batalha. A potência
do ritual sacrificial tinha uma conexão direta com o grau de dificuldade
envolvido na conquista do inimigo. Aqueles selecionados para o sacrifício eram
pintados de azul (a cor do sangue desoxigenado), torturados ao ponto de
derramarem seu sangue e posteriormente mortos, tendo os corações arrancados do
peito aberto a golpes. O coração era exposto ao Sol e depois queimado até as
cinzas, o que nutri as divindades. A oferenda imitava o sacrifício arquetípico
de Quetzalcoatl, o deus ubíquo adornado de pernas – criador do universo. Uma ideia
que teve sua contra parte na Índia antiga nos ritos de sacrifício (puruṣamedha).
Por trás deste insensível costume de arrancar o coração para fora do
peito, reside a equiparação ritual de sangue com o poder da vida.2
Como em muitas culturas arcaicas, a pré-civilização védica acreditava na necessidade de se derramar o sangue humano na
terra a fim de se melhorar a vida das divindades, guardiãs da ordem cósmica.
Com a evolução da consciência ritual, o sangue menstrual também adotou um papel
superlativo nas sociedades aborígenes da Índia antiga, onde sacerdotisas
especialmente aptas a nutrir a terra com sua energia vital (o sangue
menstrual), derramavam-no nos campos em busca de fertilidade após intensas
práticas psicosexuais.
Outro ponto importante na relação entre o princípio da vida e o sangue foi
à observação de que a jovem mulher, ao parar de sangrar pela suspensão do
período de catamênio, dá inicio ao processo em que uma criança nasce através de
sua vulva (yoni). Correlacionando os
dois fatos, foram estabelecidos cultos envolvendo o sacrifício de animais, em
que o sangue era utilizado como oferenda aos deuses e deusas, assim como cultos
à vulva, considerada um portal mágico capaz de trazer uma vida do mundo dos
espíritos para o mundo dos humanos.
Esta é talvez uma das raízes do culto a vulva ou portal da vida denominado
yoni-pūjā,
como uma forma de celebração da própria vida.
Deste ponto em diante a mulher passa a ser percebida como uma
representação física da Deusa Mãe, aquela que trouxe o Cosmos à vida, e seu
corpo passa a ser cultuado como o cálice sagrado ou templo vivo da Deusa.3
Hoje em dia, rituais sacrificiais que envolvem a imolação de seres humanos
e animais existem, mas são uma realidade distante. Por exemplo, os
tradicionalistas da escola Mīmānsā, um
dogmático sistema de interpretação das escrituras védicas que versa como devem ser efetivados os rituais e cerimônias
religiosas, continuam a fazer oferendas sacrificiais, mesmo enfrentando muita
oposição no decorrer dos séculos.
De qualquer maneira, o sacrifício era destinado a assegurar a continuidade
da prosperidade da comunidade, ou de restaurá-la se, por algum motivo, ela
tivesse sido solapada. Assim, os sacerdotes védicos
sentiam que precisavam ofertar suas melhores e mais valiosas posses. Para eles,
eram os animais domésticos, principalmente o gado e, em ocasiões especiais,
cavalos. Em épocas anteriores, a vida humana, pois esta era considerada mais
preciosa do que qualquer outra forma de vida e por esta razão era tida como a
mais elevada oferenda sacrificatória para as divindades, ou poderes invisíveis.4
No entanto, através das eras, esta idéia sacrificial tomou outras formas e
já no período das primeiras Upaniṣads a palavra sacrifício tornou-se sinônimo de
autotranscendência. Em outras palavras, na época dos Vedas e nas que se seguiram, os rituais sacrificiais eram um
aspecto importante da tradição dos sacerdotes e videntes (ṛśī). Apenas na época das Upaniṣads os sábios começaram a interiorizar os rituais, i.e.
utilizar seu próprio corpo-mente como altar de sacrifício e seu próprio amor e
devoção como oferendas para o fogo da rigorosa autodisciplina e auto-oferenda.
Como qualquer dicionário nos informa, a palavra sânscrita
yoga5 originou-se da raiz
verbal yuj (“jungir”, “unir”,
“disciplinar”), que está intimamente conectada à raiz verbal yaj (“venerar por meio do sacrifício”),
formando o importante termo yajñā, ou
“sacrifício”. Assim, Yoga pode ser
definido, de maneira sucinta, como a disciplina
do autosacrifício ou autoentrega
que, em termos mais contemporâneos, podemos chamar de autotranscendência, i.e.
a transcendência da ilusão de ser um corpo-mente-personalidade limitado.
Uma palavra cognata é yāga,
que possui as mesmas conotações de yajñā.
Ela é muitas vezes utilizada no sentido de antar-yajñā,
i.e. “sacrifício interior”, um ato de total renúncia de todo apego a coisas
externas e relações sociais. Mas acima de tudo, espera-se que o yogī renuncie ao ego, a identidade
construída por meio da qual nos apegamos ou abrimos mão do corpo-mente e ao
mundo. “Abrir mão” do ego é uma das atitudes essenciais a ser cultivada no
caminho do Yoga, conforme exposto já
nas primeiras Upaniṣads, cerca de
1000 a.C.
Desta maneira, em detrimento dos videntes védicos que utilizavam sacrifícios
externos para focar a mente e elevá-la as alturas extáticas – onde podiam
perceber de modo intuitivo a lei cósmica e até mesmo penetrar o envoltório
cósmico para descobrir a Singularidade Últuma –, os sábios das Upaniṣads descobriram e louvaram o
“sacrifício interior” como recurso fundamental para compreender a Realidade
Transcendental. As suas investigações espirituais levaram à criação do Yoga, tal como o conhecemos.
O Yoga é sacrifício
interior e autosacrifício. Os yogīs
das Upaniṣads não requeriam mais
rituais externos para concentar a mente errante. Eles aprenderam a reconhecer
que a própria mente era suficiente para operar o milagre da profunda
autotranformação. O objetivo central de todas as práticas de autosacrifício,
tais como o Yoga, é de transcender a
condição humana e, portanto, também, de transcender o próprio cosmos.
Essa transcendência não implica, de modo algum, em uma
obliteração do ser humano ou do mundo, como tem-se pensado. Ao contrário, é uma
idéia muito antiga de que, ao transcender a condição humana, tornamo-nos
plenamente o que somos – enquanto Realidade Última – e, por esse motivo,
podemos contribuir com a ordem e harmonia cósmica. Apenas o ego é considerado
como uma fonte de distúrbio no cosmos. Dissolver a ilusão do ego, em
contrapartida, tem um efeito salutar no mundo como um todo.
A tradição tântrica formulou um símbolo poderoso que capta o âmago do
espírito da autotranscendência e seus
efeitos salutares: o mito da deusa Chinnamastā
(“Aquela que é decaptada”). Esta divindade é uma das deusas mais
impressionantes do panteão tântrico. Geralmente, sua imagem iconográfica é
representada na postura em pé, segurando em sua mão direita uma espada ensanguentada e na esquerda sua própria cabeça cortada, com o
sangue jorrando de seu pescoço em três direções. Os jatos direito e esquerdo,
respectivamente, entram na boca de dois devotos, um de cada lado da deusa, ao
passo que o jato do meio flui diretamente para dentro da boca de sua cabeça
cortada.
Segundo o mito tântrico, a deusa, em sua função de Mãe do
Universo, decapitou a si mesma para alimentar seus devotos famintos com seu
próprio sangue. Em outras palavras, ela cometeu o autosacrifício máximo de
oferecer seu corpo e substância vital – o sangue – em benefício da humanidade.
O jato médio de sangue que verte de seu pescoço e entra em sua própria boca é
um sinal de que a deusa não cometeu um suicí dio convencional. O seu autosacrifício
não nega a vida, mas a intensifica. O jorro central de sangue que sai de seu
corpo decapitado corresponde ao fluxo de energia psicoespiritual (kuṇḍalinī) ao longo do “gentil” canal
central do corpo (suṣumnā-nāḍī). As
duas torrentes de sangue, a direita e esquerda, representam, respecticamente, piṅgalā e iḍā-nāḍī. Esse simbolismo e seu processo subjacente são
fundamentais para o Yoga Tântrico. Quando a energia
psicoespiritual sobe pelo canal central a partir da base da coluna vertebral (mūlādhāra-cakra) até a coroa craniana (sahasrāra-cakra), ela não apenas
revitaliza cada célula, mas também ajuda o praticante tântrico a transcender e
transmutar o corpo em um veículo “divino”.
A imagem de Chinnamastā sugere que ela possui infinita
vitalidade, e aqueles que imitam seu autosacrifício por meio das práticas de Yoga também ganham acesso a uma energia
incomensurável: a energia do próprio Espírito. Muitas vezes Chinnamastā é
retratada com um casal copulando. O homem em posição inclinada (viparita-rātī) é Kāmadeva, o deus do
amor e da paixão, e a mulher sentada sobre ele é Rātī, a deusa do prazer. Esta
exuberante imagem tântrica contém um triplo significado. Primeiro, o ato de
autosacrifício de Chinnamastā transcende a sexualidade e o mero prazer.
Segundo, o trabalho tântrico de autotransformação é baseado na energia
psicosexual. Ao invés de reprimir o instito sexual, os adeptos tântricos o
utilizam para aumentar a vitalidade do corpo, que então proporciona a energia
necessária para transcender o corpo (e a sexualidade) como um todo. Terceiro, a
cabeça cortada de Chinnamastā representa a transcendência do complexo
ego-personalidade e sua identificação com o corpo físico. Apenas quando
superarmos nosso senso inerente de que somos
o corpo, ou pelo menos estamos ligados a ele de maneira inextricável, seremos
capazes de descobrir a nossa Verdadeira Natureza. A transcendência real da
identificação com o corpo envolve o tipo de reestruturação psicoenergética que
o Tantra e outras formas de Yoga tornam possível.
A imagem de Chinnamastā representa o triunfo da vida
sobre a morte. Ela possui um profundo significado para todo aquele que busca a
autotranscendência. Todo ato espiritual, e portanto moral, implica em ir além dos
padrões de hábito do ego e em manter uma conexão com todas as formas de vida e
com o meio ambiente ao nosso redor. Em todas as atividades, devemos ser o
sacrificador e o sacrificado. Somente assim ajudaremos a manter a ordem
cósmica, alimentando o restante da criação com nossa energia e boa vontade.
Neste momento – preservando aquilo que foi nos legado pelas Upaniṣads –, somos convocados a fazer um
“sacrifício humano” na forma de prática espiritual pessoal e consciente: a
autotranscendência constante por meio da ação responsável, da gentileza, da
compaixão e do cuidado em relação a todos os seres sencientes.
Notas:
1. Há rumores que, ainda hoje, existam
rituais de sacrifício em nome da deusa Kālī na
Índia. O British Raj, i.e. a
soberania britânica na Índia, aboliu este tipo de prática desde 1928, inclusive
a autoimolação feminina conhecida como sātī,
o ato de se jogar na pira funerária junto ao marido falecido. Mas também há
notícias de mulheres tradicionalistas que ascendem sua própria pira antes de
serem detidas.
2. Era conhecido que o sangramento de uma
pessoa ferida podia levá-la a morte. Essa observação estabeleceu uma associação
entre o sangue e o princípio da vida, pois a perda do sangue leva consigo a
vida.
3. Desta maneira, os cultos tântricos se
desenvolveram a partir de movimentos devocionais associados ao culto das
deusas, que aos poucos foi incorporando ritos de celebração da sexualidade.
4. Em uma época posterior, o homem-Deus Kṛṣṇa foi generoso ao dizer que Ele, na condição de
Suprema Personalidade de Deus, aceitaria qualquer oferenda, por mais humilde
que fosse, contanto que feita com o coração puro.
5. Segundo a documentação existente, a
origem do Yoga tem sua gestação na
época das primeiras Upaniṣads.
Posteriormente essa doutrina teria tomado corpo com a composição do Yogasūtra de Patañjali. As Upaniṣads são um conjunto de
obras consideradas pelo hinduísmo como integrantes do corpo literário da
revelação (smriti), mas que fogem ao
padrão anterior das composições védicas,
que se tratavam exclusivamente de assuntos relacionados aos rituais. As Upaniṣads
minimizam a importância do ritual em favor de uma descoberta pessoal da
perfeição. Seu conteúdo é místico e seus argumentos têm perfil filosófico,
tratando fundamentalmente da relação entre o eu e o todo, designado Brahmā. A palavra Yoga aparece pela primeira vez na Śvetāśvatara-Upaniṣad.
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