Fernando Liguori
E ele soube que o alimento era Brahman.
Do alimento todos os seres nasceram, pelo alimento eles vivem e para o alimento
eles retornarão.
Taittiriya-upaniṣad, III: 2
Alimento, anna, é a primeira
palavra sânscrita para Brahman, o Absoluto. Tudo no universo é alimento. O Ser
interior, ātman, é o devorador do
alimento que é tudo, que a tudo permeia. Tudo
aquilo que vemos é alimento para alma. Nosso desenvolvimento como alma
depende de nossa capacidade de comer, digerir e assimilar o alimento que é a nossa
vida. Alimento, anna, é a base da
vida, prāṇa. Ele carrega a força da
vida, sustentando-a no corpo.
O tipo de alimento que
buscamos reflete nosso nível de desenvolvimento. A partir da natureza do alimento que
uma pessoa escolhe seu nível de desenvolvimento é revelado. O Yoga e a Āyurveda enfatizam uma dieta estritamente vegetariana ou sattvíca,
quer dizer, uma dieta que desenvolva sattva
e suas qualidades superiores de paz, amor e consciência. O comer é nossa primeira interação com o meio ambiente. Se essa
atividade não for baseada no amor e na compaixão, todas as outras atividades
irão nos compelir ao sofrimento.
A Āyurveda propaga uma dieta
correta como fundamento de todas as suas terapias. O alimento é a primeira e mais importante forma de medicamento. Sem
uma alimentação apropriada nenhuma terapia de cura pode ser efetiva. A Āyurveda recomenta uma alimentação pura
ou sattvíca porque sattva cria equilíbrio
e harmonia, elimina fatores prejudiciais e auxilia na redução do agravamento em
todos os doṣas.
A base de sattva é a atitude de ahiṃsā (não-violência). Uma dieta
sattvíca é acima de tudo vegetariana, livre de produtos que envolvem matança ou
qualquer tipo de violência ou dano contra animais. Uma dieta sattvíca advoga
alimentos naturais que cresçam em harmonia com a natureza, em terras férteis,
que amadureçam naturalmente, cozidos de maneira correta e com a atitude
apropriada de amor. Tais alimentos são
carregados de prāṇa e consciência.
Os yogīs são as pessoas mais
estritas no mundo com relação à alimentação. Eles não apenas são vegetarianos,
mas se esquivam de alimentos comercialmente preparados como frituras e fast food. Eles se abstêm de alimentos
preparados a base de ovos e temperados a base de alho. Yogīs geralmente cozinham seu próprio alimento ou viajam com sua
própria comida, pois conhecem a arte da culinária sattvíca. Se você
convidar um verdadeiro yogī a sua
casa para jantar, ele poderá lhe ensinar como cozinhar. Neste sentido, a
primeira coisa que ele provavelmente fará será levá-lo a uma loja especializada
para assegurar que somente alimentos corretos componham sua dispensa. Com tais
alimentos, com certeza ele irá lhe preparar um maravilhoso banquete, um
verdadeiro sacramento.
Contudo, uma dieta yogī tem um
propósito diferente de uma dieta ayurvédica
e ambas não podem simplesmente serem equiparadas. Isso reflete propósitos
diferentes dessas duas disciplinas: o objetivo da Āyurveda é trazer saúde e equilíbrio ao corpo físico; o objetivo do
Yoga é nos ajudar a transcender a
consciência do corpo. Enquanto a Āyurveda
trabalha para melhorar a saúde corporal, o Yoga
nos auxilia ir além das limitações físicas. Por esta razão, as disciplinas yogīs mais tradicionais são ascéticas
por natureza, exigindo uma dieta leve a base de jejuns, alimentos crus e
métodos de desintoxicação, bem como a privação sensorial, prāṇāyāma e meditação. Todos esses fatores não apenas reduzem a
consciência corporal, mas também agravam o vāta,
que representa o componente aéreo ou não-físico de nossa natureza. A Āyurveda tradicional, por outro lado,
promove uma dieta nutrituva a base de alimentos cozidos, nos protegendo dos elementos
a fim de revigorar a força física e previnir o acúmulo dos doṣas, particularmente o vāta.
Alimentos crus ou cozidos
Hoje em dia existe muita confusão sobre o papel do alimento cru nas dietas
do Yoga e da Āyurveda, bem como na alimentação vegetariana em geral. Algumas
pessoas pensam que uma dieta vegetariana leva apenas em consideração o alimento
cru. Vegetais cozidos não se transformam em carne! Uma dieta vegetariana inclui
todos os pratos que não são à base de carne, até mesmo os cozidos. Muitos
produtos alimentícios como arroz ou batatas devem ser cozidos para que possam
ser digeridos apropriadamente.
A Āyurveda geralmente não
recomenda uma dieta à base de alimentos crus para manutenção da saúde em longo
prazo, mas somente para curtos períodos de desintoxicação. Isso porque o
alimento cru é mais difícil de ser digerido e não promove uma boa nutrição como
o alimento cozido. A Āyurveda
recomenda dietas específicas para controlar os doṣas. Elas são à base de, principalmente, todos os grãos, feijões,
brotos, raízes, vegetais, sementes e nozes, tendo o alimento cru como elemento
secundário. Essas dietas podem ser chamadas de dieta equilibrada ou nutritiva.
Contudo, a visão ayurvédica de
que o alimento cozido é melhor tem feito com que algumas pessoas pensem que o
alimento cru é ruim sob uma perspectiva ayurvédica.
Por conta da conexão que existe entre o Yoga
e a Āyurveda, alguns indivíduos podem
considerar que uma dieta à base de alimentos crus não é yogī. Contudo, se observarmos os textos tradicionais do Yoga encontraremos muita ênfase sobre
uma dieta à base de alimentos crus. A dieta yogī
é tradicionalmente conhecida como phala-mūla,
i.e. uma dieta à base de frutas e raízes, incluindo grãos e lacticínios. Yogīs em retiro na natureza vivem apenas
de alimentos selvagens como parte de seu regime espiritual e como meio de
conexão com as forças da natureza.
Alimentos crus, nós devemos enfatizar, aumentam os elementos ar e éter –
componentes vāta – no corpo e na
mente. Alimentos cozidos são melhores para aumentar os elementos terra e água –
componentes kapha – bem como o
elemento fogo – o fator pitta. Isso
torna os alimentos cozidos fáceis de serem digeridos e melhores para energizar
o corpo. Entretanto, os alimentos crus são melhores para produzir sensibilidade
psíquica do prāṇa e da mente.
Uma dieta yogī enfatiza o
desenvolvimento dos elementos ar e éter, não apenas para desintoxicação, mas
para o desenvolvimento das capacidades da mente, cuja natureza essencial é
aérea. Por essa razão, é uma dieta à base de alimentos crus e jejuns. A redução do corpo permite que a mente se
desenvolva e se expanda, diminuindo a consciência corporal e aumentando o
desapego.
A dieta yogī não considera
apenas o papel dos doṣas, principal
fator observado em uma dieta ayurvédica,
mas o papel do prāṇa. Alimentos crus
são ricos em prāṇa, principal fonte
de energia que os yogīs buscam
desenvover para refinar as faculdades superiores da mente. Alimentos crus
trazem força prânica não só para o corpo, mas para mente também. Ainda, os
alimentos crus fazem parte da tradicional dieta yogī pois purificam as nāḍīs,
o que ocorre pelo aumento do prāṇa. É
dito que alguns yogīs são capazes de
viver apenas do prāṇa que absorvem do
ar. Outros podem viver apenas do consumo da água, pequenos frutos, leite ou ghee.
A estratégia yogī para se manter
uma dieta à base de alimentos crus é aumentar o agni (o fogo digestivo) através de técnicas específicas para que o vāta não se agrave pelas práticas do Yoga. A execução correta do Yoga, principalmente do prāṇāyāma, aumenta o agni para que possamos ser capazes de
digerir os alimentos crus. Com um elevado calor interno não somos tão
dependentes do calor contido nos alimentos e nos relacionamos melhor com uma
dieta refrescante, quer dizer, crua. O yogī
com um poderoso fogo prânico digestivo pode manipular os alimentos crus,
temperaturas extremas e outros desequilíbrios físicos que ordinariamente
provocam doenças. A Āyurveda,
contudo, está designada as pessoas ordinárias que precisam de proteção dessas
vicissitudes externas e aspectos desagradáveis da vida.
Contudo, aqueles que são apenas yogīs
parte do tempo e raramente são ascetas, podem não possuir um poder digestivo
apropriado para manipular alimentos crus, particularmente por longos períodos
de tempo. Isso é essencialmente verdade no caso das pessoas tipo vāta que usualmente possuem um poder
digestivo fraco. Portanto, deve ser lembrado que uma dieta tradicionalmente yogī tem o potencial de agravar o vāta. Os tipos kapha com baixo fogo digestivo e metabolismo lento também podem se
enfraquecer com excesso de alimento cru. Os tipos pitta notarão que o alimento cru é muito leve e não é capaz de
prover por um longo período de tempo energia e vitalidade, particularmente se
estiverem envolvidos em um trabalho físico exaustivo.
A maioria das pessoas podem se beneficiar de alimentos crus por um breve
período de tempo para um processo de desintoxicação, particularmente na
primavera, estação natural para desintoxicações. Entretanto, todos nós
precisamos de um pouco de alimento cru em nossa refeição diária principal,
cerca de quinze a vinte por cento, pois alimentos crus são ricos em vitaminas,
minerais e enzimas. Bons alimentos crus a serem conjugados com jejuns são
rabanetes, cenouras, tomates e vários tipos de brotos, salsa etc.
Em adição, aqueles que desejam não apenas purificar o corpo físico, mas o
corpo sutil também, podem fazê-lo combinando uma dieta de alimentos crus com a
prática de āsanas, prāṇāyāmas, mantras e meditação. Uma prática assim pode ser executada no
período de um a três meses, dependendo da constituição individual. Qualquer
pessoa que seriamente deseja se aprofundar no Yoga deveria considerar uma desintoxicação preliminar para
conseguir uma imersão mais profunda. A maioria das pessoas no Ocidente estão
sobrecarregadas de toxinas e os métodos yogīs
e ayirvédicos de desintoxicação são
os primeiros procedimentos a serem realizados na busca pela saúde.
Yogīs avançados naturalmente ingerem
alimentos crus, grãos e lacticínios. Eles preferem viver de alimentos prânicos
a qualquer alimento processado ou requentado. Observando a natureza como sua
mãe, se esquivam de alimentos comercialmente preparados ou cultivados para o
comércio. O crescimento espiritual provê grande sensibilidade aos alimentos.
Portanto, ele requer alimentos ricos em prāṇa
e amor como ingredientes principais.
Dieta sattvíca
Para empreender uma dieta sattvíca precisamos compreender os seis sabores.
Doce é o sabor sattvívico principal, pois ele nutre, equilibra e é agradável a
mente e os sentidos. Contudo, a Āyurveda
somente considera como sabores doces aqueles que são naturais, e não açucares
processados ou artificiais. Isso inclui os açucares, amidos, carboidratos e
óleos encontrados em frutas, grãos, vegetais, sementes e nozes.
Os sabores picante, azedo e salgado são rajásicos porque contêm
propriedades estimulantes. Enquanto eles são bons para melhorar a digestão e
possuem muitas qualidades terapêuticas, potencialmente irritam o sistema
nervoso. O sabor picante ou apimentado possui uma natureza quente e expansiva e
podem fazer com que gastemos energia em excesso, o que provoca diminuição de prāṇa e ojas, aumentando tejas.
Sal pode causar obstrução arterial e em outras vias por sua natureza mineral,
da mesma maneira que o sal corroi encanamentos. O sabor azedo, como álcool, promove
fermentação no corpo.
O sabor amargo e adstringente são tamásicos por seus efeitos redutores em
longo prazo, o que, contudo, é útil para desintoxicação e perda de peso, mas
isso tem efeitos colaterais. O sabor amargo, com propriedades frias e leves,
tem um efeito desintoxicante que enfraquece o agni e agrava o vāta
(causando nervosismo). O sabor adstringente, cuja natureza é a constrição, pode
resultar na retenção de resíduos no corpo, o que agrava o vāta também.
Mesmo assim cada um dos seis sabores pode ser sattvívico, rajásico ou
tamásico, dependendo da maneira como é usado. É uma questão de proporção.
Precisamos de uma dieta equilibrada para os seis sabores. Ela consiste de uma
dieta com sabor doce predominante, equilibrando picante, salgado e azedo, como
condimentos, associando também os sabores adstringente e amargo para uma
desintoxicação, se necessário.
Sabor
|
Elemento
|
Doṣa
|
Guṇa
|
Doce
|
terra e água
|
VP- K+
|
sattva
|
Salgado
|
água e fogo
|
V- KP+
|
rajas
|
Azedo
|
terra e fogo
|
V- KP+
|
rajas
|
Picante
|
fogo e ar
|
K- PV+
|
rajas
|
Amargo
|
ar e éter
|
PK- V+
|
tamas
|
Adstringente
|
terra e ar
|
PK- V+
|
tamas
|
Dieta sattvíca para os doṣas
A Āyurveda prescreve diferentes
dietas para cada tipo de doṣa. Neste
caso, três sabores diminuem e três sabores aumentam cada um dos doṣas da maneira descrita na tabela
acima.
A dieta e a culinária ayurvédica
tem como objetivo a manutenção da saúde física e para isso nem sempre utiliza
alimentos sattvícos. Portanto, a alimentação segundo a Āyurveda leva em consideração a constituição e o desequilíbrio dos doṣas, utilizando uma combinação
alimentar para manter o equilíbrio ou sanar o desequilíbrio do corpo. O Yoga, por outro lado, enfatiza uma dieta
estritamente sattvíca, o que certamente inclui alimentos que podem
desequilibrar os doṣas. Assim, para um ótimo regime alimentar, seria
conveniente combinar uma dieta sattvíca com uma alimentação apropriada aos doṣas.
Uma dieta sattvíca é questão de disciplina alimentar e regulação das
refeições. Devemos evitar alimentos pesados ou que produzem muco pela manhã e
pela noite, pois nestes períodos o sistema é mais facilmente carregado e
portanto mais fácil de ser obstruído. A refeição da manhã deve ser leve e
estimulante. A principal refeição deve ser ao meio dia, seguida por um período
de descanço ou relaxamento. Comer tarde da noite, exceto alimentos leves como
frutas e leite, enfraquece o corpo, tornando a mente torpe.
Devemos nos lembrar dos desequilíbrios causados pela prática do Yoga. Como prāṇāyāma e meditação podem agravar o vāta, alimentos que diminuem o vāta
devem ser considerados pelos praticantes. Lembre-se das informações sobre prāṇa, tejas e ojas no segundo
módulo. Uma dieta que aumente o ojas
é especialmente indicada aos praticantes de Yoga.
Dieta prânica
Uma dieta yogī não é somente
sattvíca, mas também prânica, cheia de força vital necessária para energiazar a
mente e o corpo sutil. Assim, diferentes alimentos são indicados para
diferentes prāṇas.
Para os cinco prāṇas, os
principais alimentos prânicos são vegetais frondosos e brotos que crescem rapidamente,
principalmente no período da primavera, quando o prāṇa é abundante. Estes alimentos são estimulantes, refrescantes e
purificantes. Uma dieta à base de alimentos crus, com forte predominância de
clorofila promove o aumento de prāṇa
no organismo, principalmente quando se utiliza em conjunto especiarias como
gengibre, coentro e hortelã.
Alimentos que aumentam o apāna-vāyu
são aqueles que crescem na terra como raízes de vegetais, batatas, cenouras e
cogumelos. Estes alimentos promovem força, vitalidade e aumentam ojas, mas podem ser pesados. Como a alma
ou jīva das plantas reside na terra,
raízes contêm grande vitalidade. Essa categoria inclui raízes poderosas como ginseng,
shatavari e tônicos para o sistema
reprodutor, regido por apāna.
Alimentos que aumentam samāna
são principalmente grãos que possuem um efeito equilibrante (quando bem
assimilados), particularmente arroz. É por isso que a maioria dos grãos fazem
parte de toda dieta. Lacticínius, alimentos pré-digeridos, também aumentam samāna, bem como mel e açucares crus.
Estes alimentos nutrem e não são pesados, a menos que sejam ingeridos com
excesso. São de fácil digestão.
Alimentos que aumentam vyāna são
aqueles que se espalham pelo chão como abóboras, melões, malancias, tomates e
feijões. Estes são fortificantes e estimulantes, auxiliando a energia se
expandir. São usualmente consumidos com Grãos ou os alimentos de samāna.
Os alimentos de udāna são frutas
e nozes que crescem em árvores. Estes alimentos contêm mais elemento éter e
nutrem as camadas mais profundas da mente. Podem ser pegos por qualquer
indivíduo e são muito saudáveis, leves e equilibrantes.
O Yoga da ênfase a dieta
prânica, sattvíca. Essa dieta é composta por alimentos à base de frutas e nozes
que nascem acima da terra, pois alimentos que nascem na terra, como tomates ou
morangos, têm a tendência de desenvolver rajas.
Alimentos que crescem e se desenvolvem abaixo da terra, como alho, cebola e
cogumelos, têm a tendência de desenvolver tamas.
Mas estes são apenas fatores secundários. Existem raízes e vegetais sattvívicos
também.
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