Fernando
Liguori
ALGUNS meses atrás, eu recebi um e-mail de uma psicóloga, praticante de Yoga, com uma indagação bem inquietante.
Antes de respondê-la, recorri a alguns adeptos tântricos de confiança e a
alguns médicos ayurvédicos de bastante
credibilidade, tanto no Brasil quanto na Índia. Agradeço aos ācārya-s
Omkarnāth e Vidyānanda e aos Drs. Remmesh Datu e
Sunjib Mukherjee pela confiança, ajuda e a oportunidade de aprendizado.
O que se segue é uma parte do texto enviado pela psicóloga:
> Date: Sat,
2 May 2009 10:39:11 -0300
> Subject:
Kundalini e esquizofrenia
> From:
julianashanti@...
> To:
anuttarakulacarya@hotmail.com
> Oi acharya, desculpe
tomar seu tempo. Sou leitora de seu blog e gostaria de lhe fazer uma
> pergunta. [...] Pratico
yoga faz cinco anos e sou psicóloga. Atualmente estou atendendo uma
> paciente bipolar com
um diagnóstico de paranóia prolongada e esquizofrenia. Recentemente
> ela iniciou um
tratamento com shiroddhara para ajudá-la. Além de fazer acupuntura e ter
> uma dieta à base de
suplementos nutricionais e ervas, parece que nada tem ajudado. Ela
> pratica meditações e
diz que um ambiente calmo, com pouca luz, musicas elevadas e incenso
> ajudam a acalmá-la.
Mas algo que me deixa intrigada, são as fortes dores de cabeça, sensação
> de queimação nas
costas e nuca. Todo este problema, tanto a mente desfragmentada quanto as
> sensações, seriam um
despertar da energia kundalini? Obrigada, Juliana S.
Em minha resposta, me preocupei em traçar um paralelo entre o despertar e a ascensão da kuṇḍalinī
(que são coisas distintas) e possíveis desajustes psíquicos provindos desta
experiência mística. Mas para fazê-lo eu teria de levar em consideração minhas
próprias experiências e as experiências de amigos com um grau mais avançado de
prática e realização. Como ela citou um tratamento ayurvédico, procurei também amigos com uma bagagem maior do que a minha
na área, o que ampliou meu campo na pesquisa.
De qualquer maneira, devemos compreender que o despertar e a ascensão da
kuṇḍalinī sempre ocorrem de forma distinta. Não há uma fórmula
exata, e aquele que diz o contrário está enganando ou está sendo enganado. Se
fosse o caso, não existiriam tantos métodos diferentes para se obter este tipo
de experiência e, quem sabe, realização espiritual. Portanto, em cada um, esta
experiência será diferente, não importando o grau de desenvolvimento espiritual
em que ele se encontra no momento.
Devemos levar em consideração também a grande massa de pessoas que,
pensando estar operando com a kuṇḍalinī śakti, começaram a cavar sua própria cova, atolados em um mar de ignorância e
uma fossa de autoengano. Eu já perdi a conta de quantas vezes já escutei a
expressão: eu tenho a kuṇḍalinī desperta,
tanto ao vivo e a cores, quanto por fóruns na internet, cartas e e-mails. A
este respeito eu sempre digo: cuidado!
Isso basta. As pessoas que realmente são devotadas a uma espiritualidade pura
sem as máculas do complexo ego-personalidade logo desfazem o nó criado pelo ego
e se põem em seu lugar. Além de alguns adeptos tântricos de alto calibre moral,
eu não conheci ninguém com a kuṇḍalinī
śakti plenamente desenvolvida e operando em equilíbrio. As pessoas deveriam
se envergonhar em dizer isso!
Ademais, kuṇḍalinī desperta e elevada não
é sinônimo de liberdade interior. Ao
que tudo indica, a liberdade interior
e a benevolência andam de mãos juntas
em um mestre autêntico; um mestre liberado que seja mau é simplesmente uma impossibilidade. Sem dúvida, antes de
atingir a plena liberação ou iluminação, os adeptos com a kuṇḍalinī em plena operação podem manifestar traços de caráter
muito indesejáveis, ou até mesmo psicopatológicos. Nesse sentido, existe o
perigo de confiar a própria vida espiritual a um mestre que pode ter todo tipo
de realizações e faculdades extraordinárias promovidas pela plena experiência
da kuṇḍalinī, dotado até mesmo de
características sobrenaturais, mas que ainda não transcendeu a ilusão do ego.
O que se segue foi minha resposta:
Olá Juliana, bom dia.
Namaskār.
Obrigado por sua mensagem e desculpe a demora. Tive de recorrer a alguns
amigos e adeptos mais experientes para poder responder seu questionamento de
uma forma bem fundamentada. Nós temos de levar em consideração as três doenças
mentais que você citou (bipolaridade, paranóia e esquizofrenia) e o que isso
tem a ver com a experiência do despertar
e da ascensão da kuṇḍalinī, e como este processo ocorre na anatomia sutil.
Vamos começar descartando a bipolaridade. Na Índia,
segundo a Āyurveda, a bipolaridade é uma
doença mental causada pelo desequilíbrio das três guṇa-s (qualidades da natureza) nos doṣa-s (humores corporais). Resumindo brevemente, quando a mente se
encontra em uma predisposição tamásica
ocorre a depressão; quando a mente se encontra em uma predisposição rajásica ocorre a mania. Portanto, o
tratamento e a possível cura para bipolaridade, segundo a medicina ayurvédica, é uma satvificação do corpo, mente e emoções. Isso se dá através da prática
do Yoga, meditação, massagens e o
cultivo de um estilo de vida saudável, simples e menos consumista. Alimentação
vegetariana, livros e filmes que inspirem a paz, harmonia, felicidade etc.
Assim descartamos a associação entre a bipolaridade e a
experiência da kuṇḍalinī, pelo menos
nas pesquisas que fiz. Dos médicos ayurvédicos
que consultei, nenhum mencionou a bipolaridade como um sintoma desequilibrado
da experiência da kuṇḍalinī.
Nas pesquisas que fiz, tanto a esquizofrenia quanto a paranóia podem ser
associadas ao fenômeno da kuṇḍalinī. Eu descobri que na Índia inúmeras pessoas que são
diagnosticadas com esquizofrenia estão passando por algum tipo de despertar
espiritual, muitas vezes associado ao despertar da kuṇḍalinī. Como seus corpos e mentes não estão purificados o
suficiente para que esse processo ocorra sem dificuldades, ele é acompanhado
por rupturas na psique, causando assim a desfragmentação da substância mental.
Um fenômeno que está completamente longe de ser diagnosticado pela medicina
ocidental.
O despertar da kuṇḍalinī
ocorre de maneira distinta nas pessoas. Eu não posso lhe dar uma cartilha que
revele instruções de como se fazer para despertá-la e como lidar com os sintomas
promovidos por esta experiência. Contudo, várias tradições tântricas relataram
meios, muitos dos quais desenvolvidos por mestres através dos séculos, por onde
o adepto poderia despertar e manipular com impunidade esta energia. De acordo
com as escrituras e as instruções de alguns ācārya-s
experientes, a kuṇḍalinī pode ser
desperta por alguns métodos como:
1. utilização de certas drogas ou gañjā
(cannabis);
2. prática intensa de respiratórios (prāṇāyāma);
3. dedicação a prática espiritual (sādhanā);
4. pela graça do guru no processo de
transferência da energia espiritual (śaktipāt);
5. por acidente ou trauma;
6. espontaneamente.
Da mesma maneira, alguns mestres deixaram registros de suas experiências
com a kuṇḍalinī e os sintomas dela derivados:
1.
sensação
de uma forte corrente eletrica saindo da base da coluna e subindo até o topo da
cabeça;
2.
calor
intenso no corpo;
3.
queimaduras
podem aparecer na pele, por todo o corpo, sem um motivo aparente;
4.
visões
de energias, entidades ou seres que não são visíveis as pessoas comuns;
5.
a escuta
de vozes ou zumbidos;
6.
a escuta
e percepção de pensamentos e intensões inatas de outras pessoas.
Dentro da coluna vertebral existe um canal
de energia ou consciência chamado suṣumnānāḍī.
Este canal por onde flui o prāṇa
(energia vital) é constiuído por três camadas ou nāḍī-s internos: vajrānāḍī,
citrinīnāḍī e brahmanāḍī. Quando a pessoa não se encontra preparada, não segue
uma dieta sátvica, não controla seus
estímulos sensoriais e mentais, não segue as diretrizes morais e éticas do Yoga (i.e. yama e niyama), não
pratica yogāsana-s e meditações
regulares, é muito difícil que desperte
e ascenda a kuṇḍalinī. Mas pode acontecer. Neste caso, não será com facilidade,
e a experiência pode ser difícil e perturbadora. Vamos então trabalhar com esta
hipótese:
A kuṇḍalinī irá
ascender através da camada mais
externa do suṣumnā, o vajrānāḍī, onde todos os tipos de
fenômenos psíquicos se manifestarão, incluíndo a audição de vozes e a visão de
diferentes tipos de entidades. Isso pode ser altamente perturbador se o corpo e
a mente estiverem dominados por rajo
ou tamoguṇa, fazendo com que a pessoa
apresente características esquizofrênicas.
Se a kuṇḍalinī ascende através do citrinīnāḍī, haverá um número maior de experiências. Os vṛtti-s são alocados nos cakra-s ao longo deste canal. Assim, se a
kuṇḍalinī ascende e invade um cakra que não está completamente aberto, sua força pode vazar para fora através de algum vṛtti particular, seja ele medo, raiva,
luxúria etc. Quando isso ocorre, o vṛtti
em particular torna-se supersaturado, e a pessoa se tornará obsediada,
ocorrendo também um aumento gigantesco na propensão do vṛtti supersaturado. Assim, a pessoa pode manifestar
características maníacas, paranóicas ou obsessivas.
Quando a pessoa faz um trabalho de preparação espiritual pela prática de yogāsana-s e as demais técnicas do haṭhayoga, faz meditações regulares, segue uma dieta sátvica e procura controlar seus
impulsos sensoriais seguindo os preceitos morais e éticos do Yoga, e não havendo nenhum bloqueio no
caminho, a kuṇḍalinī então ascende
através do brahmanāḍī. Neste caso não
haverá nenhuma perturbação, mas várias experiências elevadas na medida em que a
kuṇḍalinī atravessa os cakra-s. Por exemplo, quando a kuṇḍalinī perpassa o anāhatacakra a pessoa experimenta um
sentimento de conectividade com o Universo, onde tudo é banhado por uma
prístina luz dourada de amor divino.
Por favor, veja se sua paciente relatou alguns dos sintomas aqui listados.
Esteja a par dos medicamentos que ela está usando e pergunte também se está
fazendo práticas espirituais além da meditação e se fez ou está fazendo uso de
drogas (químicas ou naturais). Perceba seu problema de forma bem holística.
Procure saber se todas estas informações recolhidas estão associadas também ao
seu passado. No caso das drogas, indague se há uma utilização permanente ou é
algo que ocorre somente às vezes. Isso tudo tem de ser levado em consideração
para um diagnóstico preciso sobre os efeitos da kuṇḍalinī.
Se você tiver certeza que os efeitos que ela está apresentando estão
associados à experiência da kuṇḍalinī,
leve-a a um autêntico e experiente guru,
svāmi ou ācārya que poderá conduzí-la ao dikṣa
(iniciação), orientando-a e guiando-a com sua experiência através das práticas
espirituais. Sob os auspícios de um professor fidedigno ela não terá
dificuldades.
De qualquer maneira, leite e ghee,
trabalho com a terra (p.e. jardinagem) e a prática de exercícios físicos (p.e.
corridas e caminhadas) farão com que ela fique mais equilibrada. Ela precisa de
uma prática regular de āsana-s e
uma alimentação sátvica.
Posteriormente, e somente então, quando sua mente estiver mais equilibrada, uma
prática pessoal de meditação. A utilização de muitas ervas apontadas pela Āyurveda como p.e. a ashva-gandha podem ajudar muito.
Abraços.
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