Fernando Liguori
Estudos sobre as técnicas
de Yoga ensinadas por Mahāṛṣi Gheraṇḍa ao seu aluno, o rei Caṇḍakāpāli na Gheraṇḍa-saṃhitā.
Grupo de Estudos Kaula, 2014.
O corpo das criaturas
vivas é o resultado das boas
e das más ações. O corpo
dá origem à ação e assim
o ciclo continua como um
moinho de água. Dessa
maneira, o ciclo da vida
e da morte de cada
indivíduo é movido por
suas ações ou karmas.
O corpo invariavelmente
se desfaz como uma
vasilha de barro sem cozimento
quando
submersa em água. Por
isso se deve moldar
o corpo no fogo do Yoga.
Mahāṛṣi Gheraṇḍa
A Gheraṇḍa-saṃhitā, um manual ou compêndio sobre haṭha-yoga,
escrito por Mahāṛṣi Gheraṇḍa na forma de ensinamentos ao seu aluno, o rei Caṇḍkāpāli,
é uma escritura de 351 ślokas divididos em sete upadeśas
(capítulos). A prática ensinada nesta escritura ao rei é conhecida como sapta-sādhanā,
compreendendo sete etapas:
1. ṣaṭ-karmāṇi: seis técnicas de purificação que
originalmente formavam o escopo do haṭha-yoga. São elas: neti
(limpeza nasal), dhauti (limpeza da cabeça e de todo canal alimentar da
boca ao ânus), basti (limpeza do intestino grosso), nauli (massagem
das vísceras), kapālbhāti (um
tipo de prāṇāyāma) e trāṭaka (um método para concentrar a mente).
2. āsana: posturas físicas para fortalecer a estrutura corporal e
torná-la estável.
3. mudrā: técnicas para dirigir e controlar a energia vital.
O sábio Gheraṇḍa acreditava que o prāṇa aquece e energiza o corpo. No
curso do sādhanā, quando o buscador senta-se em āsana por longos
períodos de tempo, um calor é produzido no interior do corpo. A temperatura do
corpo cai quando prāṇa-śakti não é controlado em seu interior, causando
a dissipação da energia. As mudrās, no entanto, contêm a energia dentro
do corpo, evitando sua dissipação.
4. pratyāhāra: uma técnica na qual os sentidos são
controlados e a mente se internaliza de maneira natural e espontânea. Após o
corpo ter sido curado pelas ações de purificação, ter atingido firmeza e
estabilidade através das posturas e ter o prāṇa controlado e equilibrado
pelas mudrās, então vem a próxima etapa, pratyāhāra. Gheraṇḍa
acreditava que no estado de pratyāhāra, quando a mente se torna internalizada
e unidirecionada, é mais fácil despertar os prāṇas. Segundo ele, pratyāhāra
é o estado onde não é preciso esforço para despertar os prāṇas e a mente
se aquieta de maneira natural.
5. prāṇāyāma: técnicas para expansão da capacidade
pulmonar, aumento da energia vital e controle dos vāyus. Geralmente, na
prática de prāṇāyāma conforme os śāstras do haṭha-yoga, a
entrada e saída do ar é controlada e a duração da inspiração e expiração é
equilibrada. Mahāṛṣi Gheraṇḍa segue essa tradição, mas ao invés de uma contagem
convencional do tempo, ele sugere o uso de mantras. Todos os prāṇāyāmas
mencionados na Gheraṇḍa-saṃhitā são praticados com mantras. Incluindo os mantras,
a prática de prāṇāyāma torna-se mais poderosa. Quando o mantra é
entoado junto com a respiração, o efeito de suas vibrações aumenta a
concentração e a produção de energia prânica. Através dos efeitos combinados de
pratyāhāra e prāṇāyāma atinge-se o controle da energia desperta.
6. dhyāna: este é o nome sânscrito para
«meditação». Quando o prāṇa está desperto e a mente internalizada, a
meditação ocorre por si mesma. O sábio Gheraṇḍa menciona três tipos de
meditação: bhairaṅga-dhyāna (meditação externa), antaraṅga-dhyāna
(meditação interna) e ekacitta-dhyāna (meditação unidirecionada). Na
meditação externa existe a consciência das experiências criadas pelos sentidos
e do universo externo; na meditação interna existe a consciência das
experiências nos níveis mentais mais sutis e na meditação unidirecionada a
realização interior ocorre.
7. samādhi: estado de hiperconsciência onde a
realização do sādhanā ocorre.
No segundo śloka, Caṇḍakāpāli utiliza o termo ghaṭastha-yoga
ao perguntar como fazer para adquirir o conhecido da verdade «tattva-jñāna».
Ele diz: ghaṭasthayogaṃ yogeśa tattvajñānasya kāranam,[1]
i.e. «como pode o yoga, que é baseado no corpo, nos ajudar a conhecer a
verdade?» Nesta sentença estão inclusas quatro indagações: 1. O que é a
auto-realização? 2. O que é ghaṭastha-yoga? 3. Como este Yoga é
praticado? 4. É possível conseguir o conhecimento da verdade através deste Yoga?
Todas essas indagações nós teremos de dissertar em um ensaio posterior. No
momento vamos nos concentrar apenas na segunda indagação: o que é ghaṭastha-yoga?
A palavra ghaṭa significa śarīra «corpo», mas também significa
«pote», «vaso», «vasilha», «jarro» ou «cântaro». Gheraṇḍa comparava o corpo
físico a uma vasilha de barro cuja forma deu-se pelo auxílio da matéria e que
continha os aparatos dos sentidos, mente, conhecimento, sabedoria, ego etc.,
todo o complexo da personalidade e todos os níveis de ser – tudo dentro do
corpo que – como uma vasilha de barro crua – deveria ser moldado pelo fogo do Yoga.
Portanto, ghaṭastha-yoga é o Yoga do corpo. Para Gheraṇḍa a
auto-realização começava no corpo e através dele.
Quando imaginamos uma vasilha de barro, uma imagem nos vem à tela da
mente. Nós vemos a imagem externa da vasilha, mas não sabemos o que contém
nela. Seu interior é desconhecido para nós. A vasilha pode estar vazia, cheia
de água ou qualquer outra coisa, pois só temos conhecimento de sua forma
externa. Da mesma maneira, devido a natureza dissipada da mente, a maioria das
pessoas experimentam o corpo e seu envolvimento com o mundo sem se preocuparem
com outros elementos dentro do corpo. Quais são as diferentes energias dentro
do corpo? Ninguém sabe. Por que executamos o karma na vida? Por que
temos a capacidade de pensar? Qual é a natureza da energia que criou o corpo e
despertou em seu interior outras energias? A maioria das pessoas não fazem a si
mesmas essas perguntas. Mas é essencial aprendermos sobre esses elementos sutis
de nossa constituição e que são responsáveis pela construção do corpo. Quando
as práticas de Yoga baseadas no corpo se iniciam, um processo muito
sutil de compreensão também se inicia. As práticas têm um efeito direto na
mente, acalmando suas atividades. O efeito físico do Yoga baseado no
corpo, segundo Gheraṇḍa, é sentido na mente. Uma vez que a agitação interna
diminuiu e a mente se acalmou, conquistamos a paz interior. Neste nível de
mente é possível executar todos os karmas e saṃskāras
harmoniosamente, interrompendo o ciclo de morte e renascimento. É dito que
quando a compreensão das energias físicas e sutis ocorre, ghaṭastha-yoga
começa.
No quarto śloka, o sábio seleciona quatro «temas» a fim de explicar
o Yoga que estava começando a ensinar ao seu aluno. Ele diz: nāsti
māyāsamaḥ pāśo nāsti yogātparam balam, nāsti jñānātparo bandhurnāhankārātparo
ripuḥ,[2]
i.e. «Não existe maior grilhão que a ilusão e não há força mais poderosa do que
o Yoga. Não existe melhor amigo do que o conhecimento e inimigo pior do
que o ego.» Com essas palavras, é possível inferir a filosofia por trás de
alguns ślokas da Gheraṇḍa-saṃhitā. O primeiro tema é a ilusão,
indicada como um grilhão, cuja existência é temporária, portanto, algo falso,
um símbolo da ignorância. Quando alguém vive na ignorância, permanece sobre o
feitiço da ilusão. Subjulgado por ela, o homem segue atrás de prazeres e
diversões. Absorto nos prazeres do mundo enquanto permanece esquecido de si
mesmo e do significado de sua existência, tamanha a sua ignorância, cria e
recria a ilusão ao seu redor. É por isso que Gheraṇḍa diz: nāsti māyāsamaḥ
pāśo, quer dizer, não existe grilhão mais perverso do que a ilusão neste
universo.
O poder do yoga
Nāsti yogātparam balam significa que não há força mais poderosa do que o Yoga.
Mahāṛṣi Gheraṇḍa tinha o Yoga na forma de uma energia poderosa na qual
as imperfeições da vida poderiam ser corrigidas e erradicadas, pois através
desta força poderosa toda a personalidade, o corpo, a mente, o intelecto, os
pensamentos, as emoções e o comportamento poderiam ser colocados sobre
controle, tornando-se moderados e equilibrados. Ou seja, através do Yoga
todo o desenvolvimento do complexo-personalidade pode ser conquistado. Desordens
físicas podem ser curadas. A mente pode ser desenvolvida e a sabedoria
adquirida através do despertar da intuição. Por esta razão o sábio diz que não
existe força maior do que o Yoga no universo. Ghaṭa, o corpo
físico – e todo complexo sutil que o acompanha – pode desenvolver todas as suas
potencialidades através do Yoga, do denso ao sutil, atingindo então a
auto-realização.
O conhecimento é o melhor amigo
Nāsti jñānātparo bandhuḥ significa que não existe melhor amigo do que o conhecimento
neste mundo. Nas situações mais difíceis da vida, conhecimento é a única força
que pode de verdade nos auxiliar. Existe uma história que ilustra essa verdade:
dois amigos que passeavam por uma floresta encontraram um urso. Um deles fugiu
correndo e subiu em uma árvore. O outro não sabia como subir na árvore.
Repentinamente, lhe veio à mente que ursos não costumam incomodar cadáveres.
Assim, ele rapidamente se jogou ao chão e fingiu-se de morto. O urso veio até
ele, lhe cheirou por alguns minutos e lhe cutucou aqui e ali. Ele permaneceu
completamente imóvel, como um cadáver, mantendo total controle sobre sua mente.
Após algum tempo o urso estava confuso e pensou: «qual é o objetivo de matá-lo
se ele já está morto?» Com este pensamento, ele foi embora, seguindo seu caminho.
Após algum tempo, o amigo desceu da árvore e perguntou: «o que o urso
disse a você?» Ele respondeu: «o urso me disse para nunca confiar em amigos que
nos deixam na mão na hora que mais precisamos». Nessa história o amigo não
ajudou o outro e sim o conhecimento. É por isso que o conhecimento é tido como
o melhor amigo.
Uma pessoa pode não ajudar a outra em momentos de dificuldade, mas o
conhecimento sempre ajudará. O conhecimento dissipa a ignorância. Todas as
dificuldades que existem na vida ocorrem por conta da ignorância. O Yoga
não acredita que uma pessoa é subjulgada pelas dificuldades na vida devido ao
destino. O Yoga diz que se alguém tem puruṣārtha «propósito», «capacidade», pode permanecer feliz em todas as condições.
O ego é o inimigo
Nāhankārātparo ripuḥ significa que o ego é a causa raiz de todas as falhas, imperfeições e insuficiências.
Todos gostam de pensar que são abençoados com as melhores qualidades. Essa
auto-imagem é a melhor e a que mais sabe das coisas, por isso é difícil se
desfazer dela. Pensamos que nosso trabalho é o melhor, o mais correto; que
nossos pensamentos são os certos e que nossos princípios são os mais adequados.
Não se prostar a ninguém é a tendência mais comum do ego, por isso ele é o pior
dos inimigos. É um obstáculo nas relações e suprime o processo de aprendizado,
pois a pessoa não se ajusta as mudanças e as circunstâncias. O véu do ego na
frente de nossos olhos impede a mente de se desenvolver. Por outro lado, o Yoga
e o conhecimento são tidos como uma força e um amigo na vida.
Desse ponto em diante a educação no processo do Yoga começa: como utilizar
o poder do Yoga através da prática e fazer do conhecimento nosso amigo,
estando livres da ignorância e portanto da ilusão, mantendo o inimigo na forma
do ego a distância.
A visão de Gheraṇḍa
O quarto śloka é o primeiro ensinamento de Gheraṇḍa. As falhas na
vida do indivíduo podem ser descobertas pela contemplação e meditação nestes
quatro temas. Neste mundo, seja nos tempos antigos ou na presente era,
conhecimento, ilusão, ego e Yoga (neste sentido, esforço para conquistar
algo), são agentes primordiais no envolvimento com o mundo e seus
acontecimentos.
O significado de ilusão, neste contexto, é «conhecimento equivocado» ou
ignorância, falta de conhecimento espiritual, algo que agrilhoa todos nós. Na
prática, māyā ou ilusão toma a forma de mente estreita e o ego,
considerando os próprios pensamentos e princípios como sendo os melhores, produz
a atração pelos prazeres sensuais do saṃsāra, o mundo fenomênico. Essa
tendência se torna um grande inimigo na jornada do espírito. Examinando o ego
de maneira acurada, podemos percebê-lo como mente estreita. Isso é fácil de
averiguar, pois quando a consciência de um indivíduo está expandida, existe uma
compreensão mais profunda da natureza egóica. Isso torna os efeitos do ego
controláveis.
Conhecimento e Yoga são vistos aqui como um amigo e uma força, uma
energia. Existem muitas formas de conhecimento. Por exemplo, os homens de outrora
que viviam nas florestas e montanhas desenvolveram lanças e arcos. Essa é uma
manifestação externa do conhecimento através do qual eles experimentavam um
sentido interno de segurança, estando hábeis a enfrentar as dificuldades da
vida.
O Yoga é visto aqui como uma energia, uma força. Outro nome para Yoga
é puruṣārtha, esforço. Quando empreendemos um esforço, ele se
torna um sādhanā, uma prática de Yoga. Yoga significa
união. Puruṣārtha e sādhanā são forças de união. Puruṣārtha
e sādhanā são śaktis, energias ou poderes latentes em nós.
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