Por Fernando Liguori
A natureza primordial, prakṛti, não é uma substância homogenia,
mas o solo da multiplicidade. Ela é como a cauda do pavão: quando se recolhe,
desaparece na uniformidade, mas quando se abre, revela todas as cores do
arco-íris. Prakṛti contém em si mesma
todas as formas da criação que se manifestam através de três qualidades (guṇas) primárias: sattva, rajas e tamas.
Rajas é a força ativa,
estimulante ou positiva que inicia a mudança, perturbando o velho equilíbrio. Tamas é a força passiva ou negativa que
obstrui, a qual sustenta a atividade anterior. Sattva é a força neutra ou equilibradora, harmonizando o positivo e
o negativo, que vigia e observa. Todas as três forças são necessárias nas
atividades ordinárias, mas possuem suas implicações espirituais também.
Sattva é a qualidade da luz, do
amor e da vida, a força espiritual superior que nos permite evoluir a consciência.
Ela proporciona virtudes dhármicas como fé, honestidade, auto-controle,
modéstia e veracidade. Rajas possui a
qualidade crepuscular da paixão e agitação, a força vital intermediária cujo
fator principal é a falta de estabilidade e consistência. Ela desencadeia as
flutuações emocionais da atração e repulsão, medo e desejo, amor e ódio. Tamas é a qualidade da escuridão, falta
de sentimento e morte, a força material inferior que nos arrasta para baixo em
direção a ignorância e ao apego. Ela causa o embotamento, a inércia, indolência,
apego emocional e estagnação.
A prakṛti imanifesta possui estas três qualidades em equilíbrio, no
qual rajas e tamas se integram em sattva.
Na manifestação, estas três qualidades assumem formas distintas: sattva dá nascimento à mente, rajas gera a vida de força e tamas cria a substância através da qual
o corpo físico se manifesta.
Leis dos guṇas
Existem duas leis básicas
acerca dos guṇas que são vitais para
o entendimento de suas funções. A primeira lei dos guṇas é a lei da alternação.
Os três guṇas estão sempre em
interação dinâmica. Todas as três forças permanecem se entrelaçando, afetando
uma a outra de várias maneiras. Rajas
e tamas existem no campo de sattva; tamas e sattva são
encontrados no campo de rajas e sattva e rajas se movimentam no campo de tamas.
A essência dos três guṇas é a
interação que existe em suas manifestações.
A segunda lei dos guṇas é a lei da continuidade. Os guṇas
têm a tendência de manter suas naturezas particulares por certo período de
tempo uma vez que são predominantes. Substâncias se estabilizam no nível de um
dos três guṇas. Enquanto é,
inicialmente, difícil para tamas se
transformar em rajas, ou para rajas se transformar em sattva, uma vez que conseguem, continuam
na mesma qualidade.
Nós podemos ver estas
duas leis a qualquer momento. A noite como escuridão se relaciona com tamas. O nascer e o pôr-do-sol como
períodos de transição se relacionam com rajas
e o dia como luz se relaciona com sattva.
Estas fases estão sempre se alternando. A noite se transforma em dia, o dia se
transforma em noite que se transforma em dia novamente. Esta é a lei da
alteração.
Contudo, uma vez que uma
fase particular seja criada, ela persiste com poucas alterações por um período
de tempo. A noite continua por um período até que se transforma em dia. Este,
por sua vez, também se mantém estável por um período de tempo até que se
transforme em noite. Mas durante estes respectivos períodos, certas condições
persistem. Por exemplo, somos mais ativos durante o dia e mais passivos durante
a noite.
A este respeito, tamas e sattva têm mais continuidade do que rajas. Rajas, que é
inerentemente instável, não pode manter sua condição por um longo período de
tempo e então logo retrocede ao estado de tamas
ou avança ao estado de sattva. Rajas tem uma característica transitória
e governa a interação entre os guṇas.
Todavia, é possível permanecer no nível de rajas
como uma qualidade dominante por um longo período na vida. Essa é a condição da
sociedade moderna, predominantemente rajásica, ativa e instável. Mas para que rajas continue nesta condição, deve
haver ação e estímulo contínuo para sustentá-lo.
Como os guṇas são condições relativas, devemos
nos lembrar que o que é sattva em um
nível, pode se transformar em rajas
ou tamas em outro nível relativamente
diferente. Tudo o que faz a consciência evoluir é sattva. Tudo o que nos leva para baixo é tamas. Isso significa que quanto mais avançamos no caminho espiritual,
tudo o que nos ajudou a crescer e cuja natureza é sattvíca, deve ser descartado
como algo tamásico na medida em que entramos em um novo nível de consciência.
O cultivo de sattva
O Yoga e a Āyurveda
enfatizam o desenvolvimento de sattva.
No Yoga, sattva é a qualidade superior que permite o crescimento espiritual.
Na Āyurveda, sattva é o estado de equilíbrio que permite a auto-cura.
As práticas do Yoga têm dois estágios: o
desenvolvimento de sattva e a
transcendência de sattva. O desenvolvimento
de sattva é a purificação do corpo e
da mente. A transcendência de sattva é
ir além do corpo e mente em direção ao Ser Interior, além de qualquer
manifestação. Se alguém não consegue desenvolver sattva, é impossível transcendê-lo. Essa é uma regra importante que
não pode ser esquecida. Se não possuímos sattva
ou pureza na quantidade apropriada em nosso corpo e mente, em nossas emoções,
seria prematuro buscar uma iluminação superior. O desenvolvimento de sattva ocorre através de uma dieta
correta, purificação física, controle dos sentidos, controle da mente, mantra e devoção. A transcendência de sattva ocorre através das práticas
meditativas mais avançadas.
Sattva também é a chave para
cura ayurvédica. A Āyurveda afirma que quando o complexo
corpo-mente é sattívico, torna-se difícil que padeça de doenças, estando
capacitado a permanecer em um estado de equilíbrio. A doença, particularmente
de natureza crônica, é essencialmente um estado tamásico. Tamas é responsável pelo acúmulo de toxinas e material residual em
um nível físico bem como pensamentos e emoções negativas em um nível
psicológico. A saúde é um estado sattvíco de equilíbrio e adaptação que evita
qualquer tipo de excesso no organismo. Rajas
é o movimento existente tanto da saúde a doença quanto da doença a saúde,
dependendo da direção de seu desenvolvimento. Doenças agudas estão sob o
domínio de rajas, que associa-se a
dor.
Contudo, nós não podemos
nos esquecer dos outros níveis de manifestação dos guṇas, quando eles aparecem de forma mesclada na evolução e
expressão da personalidade.1 Existe uma quantidade elevada de rajas e tamas em sattva e uma
baixa quantidade de sattva em rajas e tamas. Similarmente, existe o aspecto rajásico de tamas e o aspecto tamásico de rajas. O que se segue é uma breve
descrição destes aspectos:
1. Rajas-sattva: A força ativa ou transformadora de sattva. O poder da aspiração espiritual que nos impulsiona para
cima, sempre buscando crescimento e desenvolvimento interior. É a energia da
cura, da integração e da totalidade espiritual.
2. Tamas-sattva: A força
destrutiva de sattva que elimina a
negatividade. É a estabilidade inerente de sattva,
sua capacidade de suportar os intempéries da vida e transcender seus
obstáculos. É a capacidade do estado de equilíbrio de sustentar a si mesmo e de
se proteger contra a doença e o desequilíbrio.
3. Sattva-rajas: É o tipo
religioso e espiritual das pessoas rajásicas essencialmente idealistas. Aqui encontramos
traços da agressão rajásica, expansão externa e busca pelo poder. Religiões
baseadas no militarismo, exclusivismo e intolerância refletem essa qualidade.
4. Tamas-rajas: A inércia
dos tipos rajásicos, sua resistência a qualquer força superior ou elevada, mantendo-se
apegado ao seu poder pessoal sem a menor consideração pelas conseqüências de
seus impulsos, seja em relação a si mesmo ou a outras pessoas.
5. Sattva-tamas: A
religião, espiritualidade ou idealismo das pessoas tamásicas. Aqui encontramos
traços da destruição tamásica, escuridão e desilusão. É o nível dos cultos
sombrios e das supertições.
6. Rajas-tamas: A agressão
e violência das pessoas ignorantes e insípidas. É talvez a qualidade mais
destrutiva dos guṇas. Pessoas
tamásicas pisam nas outras e, destituídas de sensibilidade, se deleitam em
prejudicar e destruir. Perversões sexuais profundas se manifestam neste nível.
A força rajásica superior
A força rajásica superior
ou rajas-sattva é talvez a
força-chave tanto para espiritualidade quanto para cura. A força rajásica
inferior é a força rajásica que está sob o controle de tamas, como o crepúsculo que lentamente se transforma em noite ou o
outono que se transforma em inverno. A força rajásica superior é a força
rajásica que está sob o controle de sattva,
como o alvorecer que se transforma em dia ou a primavera que se transforma em
verão. No comportamento humano, rajas
inferior é a atividade auto-centrada que leva a exaustão ou sofrimento (tamas). Rajas superior é a prática espiritual que leva a paz (sattva).
Para que o crescimento
espiritual ocorra, essa força rajásica superior é necessária. Ela é a verdadeira
śakti ou energia transformadora por
trás do processo de transformação espiritual. Através dela o buscador se transforma
em um guerreiro espiritual capaz de executar práticas espirituais com grande
energia e vigor. O Yoga não apenas
desenvolve sattva, mas essa força
rajásica superior a fim de que sattva
possa se estabelecer no organismo. Similarmente, a Āyurveda utiliza métodos fortes de cura como ervas poderosas e o
tratamento através do pañca-karma
para restaurar a saúde. Para que o crescimento espiritual e a cura possam
ocorrer, a força rajásica superior ou energia transformadora deve estar
presente, crucialmente, na busca pela auto-cura e auto-realização. A força
superior de rajas (rajas-sattva) aciona o fogo da kuṇḍalinī-śakti para desobstruir o corpo
sutil.2 A kuṇḍalinī
sistematicamente integra tudo em um estado puro de sattva.
Tamas-sattva, o poder de resistência
de sattva, muitas vezes é de grande
auxílio. Na vida espiritual eles nos ajuda a resistir contra qualquer obstáculo
que tente nos tirar do caminho. No processo de cura, ele sustenta as funções
imunológicas do corpo e da mente.
A constituição mental de acordo com os três guṇas
A Āyurveda e o Yoga usam os
três guṇas para determinar a natureza
mental e espiritual do indivíduo. Geralmente, como afirmamos anteriormente,
apenas um guṇa predomina em nossa
constituição. Mas todos nós possuímos momentos espirituais ou sattvícos,
períodos perturbantes ou rajásicos e às vezes momentos letárgicos ou tamásicos
que podem ser curtos ou longos, dependendo de nossa natureza. Também podemos
passar por fases sattvícas, rajásicas e tamásicas na vida que duram meses ou
anos.
Os guṇas demonstram nosso estado mental e espiritual para que possamos
medir nossa propensão em relação aos problemas psicológicos. O teste que se
segue demonstra essas qualidades e como elas atuam em nossa vida e
comportamento. As respostas a esquerda indicam sattva, no meio rajas e a
direita tamas. Preencha a tabela com
cuidado e honestidade. Depois de responder o questionário para si mesmo, peça a
alguém que o conheça bem, como seu marido ou esposa ou até mesmo um amigo
próximo para respondê-lo para você. Perceba a diferença entre como você vê a si
mesmo e como os outros o vêem.
Para maioria de nós,
nossas respostas geralmente cairão no meio (a área de rajas), que é o principal estado espiritual de nossa cultura ativa
e extrovertida dos dias de hoje. Nós temos vários problemas psicológicos, mas
geralmente conseguimos lidar com eles. Uma natureza sattvíca demonstra uma
disposição espiritual com poucos problemas psicológicos. Uma natureza altamente
sattvíca é difícil em nossos tempos e demonstra as qualidades de um santo ou
sábio. Pessoas tamásicas possuem perigosos e sérios problemas psicológicos, mas
seriam incapazes de responder esta tabela ou fazer um curso como este. As áreas
em nós que podemos melhorar de tamas
para rajas ou de rajas para sattva irão
promover paz mental e crescimento espiritual. Todos nós podemos realizar
mudanças em nós mesmos.
Quadro de constituição da
mente
|
Sattva
|
Rajas
|
Tamas
|
Dieta
|
Vegetariana
|
Um
pouco de carne
|
Regime
à base de carne
|
Drogas, álcool e estimulantes
|
Nunca
|
De
vez em quando
|
Sempre
|
Impressões sensoriais
|
Calmas,
puras
|
Misturadas
|
Perturbadas
|
Necessidade de sono
|
Pouca
|
Moderada
|
Muita
|
Atividade sexual
|
Pouca
|
Moderada
|
Muita
|
Controle dos sentidos
|
Bom
|
Moderado
|
Fraco
|
Fala
|
Calma
e tranqüila
|
Agitada
|
Tediosa
|
Limpeza
|
Muita
|
Moderada
|
Pouca
|
Trabalho
|
Altruísta
|
Para
objetivos pessoais
|
Preguiça
de trabalhar
|
Raiva
|
Raramente
|
Às
vezes
|
Freqüentemente
|
Medo
|
Raramente
|
Às
vezes
|
Freqüentemente
|
Desejo
|
Pouco
|
Considerável
|
Muito
|
Orgulho
|
Pessoa
modesta
|
Pessoa
egocêntrica
|
Vão
|
Depressão
|
Nunca
|
Às
vezes
|
Freqüentemente
|
Comportamento violento
|
Nunca
|
Às
Vezes
|
Freqüentemente
|
Apego ao dinheiro
|
Pouco
|
Considerável
|
Muito
|
Alegria
|
Comumente
|
Parcialmente
|
Nunca
|
Capacidade de perdoar
|
Sem
dificuldade
|
Tem
dificuldade
|
Longos períodos de rancor
|
Concentração
|
Boa
|
Moderada
|
Pouca
|
Memória
|
Boa
|
Moderada
|
Pouca
|
Força de vontade
|
Intensa
|
Variável
|
Pouca
|
Sinceridade
|
Constantemente
|
Na maior parte das vezes
|
Raramente
|
Honestidade
|
Constantemente
|
Na maior parte das vezes
|
Raramente
|
Paz de espírito
|
Constantemente
|
Parcialmente
|
Raramente
|
Criatividade
|
Muita
|
Moderada
|
Pouca
|
Estudos de caráter espiritual
|
Diariamente
|
Às
vezes
|
Nunca
|
Mantra e oração
|
Diariamente
|
Às
vezes
|
Nunca
|
Meditação
|
Diariamente
|
Às
vezes
|
Nunca
|
Serviço
|
Muitos
|
Consideráveis
|
Nenhuns
|
TOTAL
|
Sattva_______
|
Rajas_______
|
Tamas_______
|
Texto retirado da apostila do Curso de Aprofundamento em Yoga
& Āyurveda ministrado pelo Instituto Kaula.
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