Fernando Liguori
O
presente texto é a transcrição da segunda parte da palestra «A Natureza da Vida
& do Mundo» ministrada pelo Professor Fernando Liguori para os alunos do
Curso de Formação em Yoga da Escola Ātma Vidyā, Barbacena, Minas Gerais em 15
de setembro de 2012. A série de artigos «Vida de Yoga» está sendo escrita para
responder inúmeras perguntas enviadas pelos leitores do blog Yoga Dṛṣṭi. Temas
como o propósito do Yoga na vida, a integração de suas práticas no dia-a-dia de
forma equilibrada para que atuem na mente, corpo e espírito, a relação entre o
guru e o discípulo, sādhanā, disciplina e estilo de vida yogī etc. Nessa
direção, o Yoga Dṛṣṭi apresenta o Yoga na forma de uma medicina sagrada, um
remédio em cápsulas a ser tomado todos os dias. Para nós, Yoga é prática, Yoga
é sādhanā, Yoga é estilo de vida, Yoga é cultura.
Os antigos ṛṣis e munis da
Índia chegaram à conclusão de que o yoga é o meio pelo qual podemos
melhorar a qualidade de vida, erradicando suas condições limitantes para experienciar
a liberdade e a transcendência.
Śrī Swāmi Śivānanda e depois seu discípulo,
Śrī Swāmi Satyānanda Saraswatī, nosso guru, costumavam dizer que o yoga
não é um método para se conquistar a auto-realização. Eu diria que nenhuma
escritura ou yogī diz que o yoga serve para conquistarmos a
auto-realização. As pessoas que não entenderam os princípios do yoga e da
vida espiritual costumam dizer que o yoga leva a auto-realização, que o
objetivo do yoga é a auto-realização. Entretanto, nenhum mestre iluminado,
santo ou escritura diz que a auto-realização é o objetivo da vida. E por que
eles não dizem isso? Porque conhecem as dificuldades da jornada pela qual todos
nós temos de passar. Antes de se aprender como se explode um átomo, primeiro
precisamos nos tornar letrados. Depois devemos estudar o assunto com profundidade
e determinação para adquirirmos um entendimento amplo sobre o tema e só depois
podemos ter a experiência daquilo que aprendemos. Assim, antes de nos tornarmos
cientistas, temos de estudar. Somente nesse caminho seremos proficientes na
exploração do átomo e teremos habilidade para explodi-lo em um laboratório com
segurança.
Por que eles não disseram que a
auto-realização é o propósito e o objetivo da vida? Porque almejar a
auto-realização é o mesmo que um homem cego almejar ver o sol. Tentar ver o sol
pode ser o desejo de um cego, mas não sua necessidade. A necessidade do cego é
adquirir a visão. Uma vez que tenha obtido a visão, então está livre para ver o
sol, a lua, as estrelas e toda criação. Estar apto a ver o sol não é a
prioridade do cego; a visão é sua prioridade. Da mesma maneira, a
auto-realização não é a prioridade da vida. Trabalhar através das impurezas da
mente e conquistar um estado de pureza são o objetivo, aspiração e esforço de
cada um de nós.
O gerenciamento das funções da mente
Isso também foi explicado por Patañjali no Yogasūtra
onde ele declara que o objetivo do yoga é citta-vṛtti-nirodhaḥ,
quer dizer, a cessação dos turbilhões da mente ou a cessação das
modificações mentais, não ātma-sākṣātkāra, quer dizer,
auto-realização. O objetivo do yoga, de acordo com Patañjali, é o
gerenciamento, organização e harmonização das funções da mente, não
auto-realização ou realização de Deus. O yoga não fala de Deus. Ele
fala de um estado mental conhecido como kaivalya. Este é um estado de
união onde todas as energias dissipadas da mente são colocadas sobre controle a
fim de criar uma nova identidade e experiência na vida. Neste estado
transcendental a unicidade experienciada é conhecida como kaivalya.
Śrī Swāmi Satyānanda costumava dizer que a
experiência transcendental não está separada de nós. Deus está onde estamos.
Deus não está em igrejas, templos ou mesquitas. Ele está onde estamos. Em suas
lições, Śrī Swāmijī ensinava métodos simples para conquistarmos experiências
transcendentais elevadas. O problema é que quando nos sentamos para este
encontro com Deus nós não o encontramos. Ao invés disso somos confrontados pela
nossa mente, pensamentos, desejos e o ego. Swāmi Śivānanda e Swāmi Satyānanda ensinaram
que o yoga é um meio, um mecanismo pelo qual podemos cultivar nossa
criatividade inerente e gerenciar o comportamento da mente que, quando
dissipada, cria dor e conflito. Se aprendermos como gerenciar as aflições,
tensões, emoções, desejos, ambições e paixões, adentraremos em um estado de
equilíbrio capaz de dar nascimento a um novo estado de consciência, a
consciência testemunha ou draṣṭa-bhāva mencionada no Yogasūtra
como tadā draṣṭuḥ svarūpe’vasthānam, o estado de testemunha. Este é o
estado onde podemos nos tornar testemunhas de nossa participação no mundo de māyā,
o mundo dos sentidos e dos objetos dos sentidos. Cultivando este estado de
testemunha podemos ver como māyā nos influencia e nos afeta. Assim
podemos traçar planos e métodos para escapar de sua influência.
Quando as águas do lago estão paradas, nós
podemos ver o reflexo das nuvens, do céu, das árvores, das montanhas, do sol e
da lua. Mas quando as águas estão agitadas não conseguimos ver reflexo algum.
Da mesma maneira, quando nossa mente se encontra em repouso e sossegada, o
mundo é refletido nela; a agitação, inquietação e estimulação interior foram
apaziguadas. Na medida em que a mente descansa e encontra paz, desenvolve sattva,
a qualidade da verdade; mas quando ela se encontra em desassossego, perdemos
sua claridade. A jornada yogī se inicia nessa ideia. Os antigos munis
e ṛṣis ensinaram que através do yoga é possível superar as
condições restritivas da mente, do corpo e da energia. É possível adquirir um
entendimento e experiência de uma natureza superior, uma natureza
transcendental além do alcance da força gravitacional de māyā, que é
muito poderosa. A fim de aproveitar a energia e perceber a consciência para nos
tornarmos livres das condições limitantes do mundo, um sistema completo foi
formulado. Ele inclui práticas físicas, mentais e muitos outros exercícios
psicofísicos; ferramentas para transformar as expressões, faculdades e energias
que normalmente experimentamos de forma exteriorizada.
Integrando cabeça, coração e mãos
A filosofia do yoga foi organizada
como um sistema que pudesse integrar as faculdades e qualidades da cabeça, do
coração e das mãos. Esse era o manifesto de Swāmi Śivānanda. Swāmi Satyānanda
dizia que o intelecto, as emoções, as aspirações espirituais e a interação
física com o mundo e a sociedade tem de acontecer e acontece desde sempre.
Contudo, isso pode acontecer de forma mais refinada e aprimorada, de forma mais
harmoniosa e altruísta, ao invés da maneira dissipada como vivemos no presente.
A natureza dissipada da mente é motivo de
aflição na vida de todos nós, pois ela está sempre apegada ou associada a algo
ou alguém. Experimentamos muitos problemas: desentendimentos matrimoniais,
querelas com a sogra, desajuste com os filhos, brigas com os vizinhos ou
colegas de trabalho. Nesse caminho, nos magoamos, nos ofendemos e no fim nos
afligimos. Por que? Por causa das associações, do apego e da expectativa. Se
existe problema em qualquer aspecto de nossas relações interpessoais sentimos
ansiedade, aflição e tensão. Na grande maioria das pessoas a mente é
responsável por estados de dor, desespero, frustração e agitação. Aqui o yoga
se aplica de maneira bem simples. Os yogīs dirão: «a mente é a primeira
a ser afetada, portanto, primeiro gerencie as funções da mente». É assim que
Patañjali começa: aprenda a gerenciar as funções da mente; aprenda a equilibrar
e harmonizar as funções da mente.
Nessa direção, o yoga evoluiu e foi
desenvolvido como um sistema que pudesse nos proporcionar maneiras adequadas de
superarmos a natureza condicionada da mente a fim de erradicarmos a fonte das
aflições e amarguras. Livres de sua natureza condicionante, experimentamos a
liberdade de uma mente não condicionada.
A conexão corpo-mente
Os yogīs concluíram que a mente vibra
em diferentes níveis, portanto, aperfeiçoaram inúmeras técnicas e princípios
que, sendo seguidos disciplinadamente, são capazes de curar a ruptura no fluxo
da consciência, o que acaba por refinar o comportamento, as emoções, ideias e
pensamentos. Uma expectativa ou desejo não satisfeito provoca descontentamento,
tensão e ansiedade; desequilíbrios que eventualmente produzirão pressão alta,
hipertensão, ulceras, asma, diabetes etc. A medicina moderna já atesta, faz
algum tempo, que a maioria dos problemas é de natureza psicossomática. Por psicossomático
queremos dizer algo que germina na mente e se manifesta no corpo.
Existem poucos problemas somatopsíquicos, ou seja, aqueles que aparecem no
corpo e afetam a mente.
Já os problemas psicossomáticos são muitos.
Não somente aqueles notoriamente conhecidos como esquizofrenia, bipolaridade,
psicose etc. Até mesmo negatividades como raiva, ciúme, aversão, ganância etc.
são condições distorcidas da mente. Devemos tomar cuidado e nos proteger contra
essas negatividades. Não devemos nos deixar seduzir por nosso ódio e aversão,
pois se nos deixarmos ser seduzidos por estes aspectos negativos, o corpo cairá
enfermo ao ponto de tornar-se diabético ou canceroso. O ódio é cancerígeno. Quando
odiamos alguém temos um tumor na mente que cresce e cresce. Como podemos tratar
isso?
As doenças psicossomáticas, de acordo com yoga,
não são apenas aquelas identificadas pelos psiquiatras e psicólogos. Tendências
negativas, comportamento desajustado e pensamentos destrutivos são doenças da
mente. Se tivermos esses miasmas na mente, devemos tratá-los com muita
seriedade, da mesma maneira que curamos o corpo. Quem tem asma utiliza a
bombinha para se livrar do desconforto da doença. Da mesma maneira, quando
temos raiva de alguém devemos encontrar um meio para nos livrar dessa tendência
negativa. Do contrário, nos sufocaremos em nosso próprio ódio, ciúme, frustração,
depressão e ansiedade. Uma vez que estejamos sufocados, a doença logo se
instaura. Isso é certo.
A inquietação dos pensamentos afeta a mente;
a inquietação dos desejos afeta as emoções e a inquietação dos sentidos afeta o
corpo. O yoga provê ferramentas para gerenciar e harmonizar esses
aspectos limitantes da vida.
Yoga como prática, sādhanā, estilo de
vida e cultura
Swāmi Niranjanānanda Saraswatī, em um satsanga
proferido em Gaṅga Darśan no ano passado, na ocasião do Jubileu de
Ouro da Bihar School of Yoga (23 a 27 de outubro), disse:
Eu
não considero o yoga apenas como uma prática; antes, no Niranjanānanda-yoga-saṃhitā,
o yoga é agrupado em quatro categorias: prática, sādhanā, estilo
de vida e cultura. É dessa maneira que vejo o yoga; essa é sua
progressão.
Podemos dizer que grande parte do público que
se aproxima do yoga são apenas praticantes. Eles comparecem as aulas de āsanas,
fazem alguns exercícios, algum relaxamento ou prática meditativa e saem
dizendo: «fiz minha prática de yoga». Desculpem-me as pessoas que dizem
isso, mas sinto muito, vocês não praticam yoga. As pessoas apenas
praticam certos aspectos do yoga. Os interessados nesse tipo de prática
vão às sessões de āsanas apenas por curiosidade ou por algum objetivo em
mente. Eu venho levantando a questão de que hoje em dia os indivíduos que
procuram o yoga o fazem em busca de seus efeitos colaterais. Se existe
estresse, buscam o yoga para se livrarem dele; se têm alguma doença, vêm
até o yoga em busca de cura. Ou seja, praticam yoga para
necessidades estritamente pessoais. Não estão praticando yoga pela
aspiração dos ideais do yoga. Aqueles que se aproximam do yoga
pelos motivos corretos, para experimentarem na vida o yoga, são conhecidos
pelo nome de sādhakas. Aqueles que praticam yoga para se sentirem
bem e leves, um pouco mais flexíveis, não são sādhakas. Pessoas que
praticam dessa maneira ainda estão aprendendo o ABCD do yoga. Elas
passam anos executando práticas diárias. Não podemos apertar o interruptor da
lâmpada esperando que o ventilador comece a funcionar. Se quisermos ligar
ventilador, precisamos girar seu botão. Da mesma maneira, não devemos praticar āsanas
com a esperança de despertarmos a kuṇḍalinī. Essa é uma ideia
equivocada.
Deve haver uma mudança no entendimento, na
apreciação e experiência do yoga. Devemos caminhar através destes quatro
estágios da prática para realizar profundamente o yoga. A situação
torna-se mais séria quando ensinamos a cultura do yoga. Swāmi Niranjanānanda
costuma se referir aos professores desse yoga mais popular, acessível em
qualquer academia de ginástica ou centro de exercícios como «professores do
jardim de infância». Swāmijī diz que esses «professores», em sua grande maioria
formados em cursos expressos ou supletivos, falam a seus alunos sobre os
maravilhosos benefícios a saúde proporcionados pelos exercícios e como eles são
úteis na manutenção da saúde física e mental. Para nosso guru, esse é o jardim
de infância do yoga.
No ensino fundamental do yoga o
primeiro assunto a ser tratado é o sādhanā, onde aprendemos algo e o aperfeiçoamos.
Quando aprendemos a tabuada, estudamo-la e aperfeiçoamos o conhecimento sobre
ela; quando aprendemos história, aperfeiçoamos o conhecimento guardando na
memória os fatos. Ou seja, quando aprendemos matemática, geografia, física ou
química, absorvemos o conteúdo da seguinte maneira: processo de entendimento e
desenvolvimento mental adequado. Isso é sādhanā. Yoga-sādhanā é a
prática do yoga para seu verdadeiro propósito. Quando praticamos os kriyās
do yoga temos como objetivo o despertar da kuṇḍalinī. É com esse
propósito em mente que executamos os exercícios e não desistimos até que o
objetivo seja conquistado. É isso que o sādhaka faz: se esforça para
transformar e melhorar todos os aspectos de sua vida. Isso é sādhanā.
Quando começamos a incorporar os princípios
do yoga na vida, então ele começa a se transformar em estilo de vida. O yoga
passa a se refletir em nosso comportamento e relações interpessoais. Esse
despertar positivo e disciplinado auxilia no equilíbrio interno e externo,
melhorando nossa relação com a família, sociedade, nação e mundo. Estilo de
vida yogī é o tema principal no ensino médio do yoga.
Quando esses princípios se tornam parte
inseparável de nosso comportamento, então o yoga se torna uma cultura.
Dessa maneira, começamos a enxergar de maneira muito clara e progressiva como o
yoga pode ser verdadeiramente útil a longo prazo na vida, não apenas
como uma prática de uma ou duas horas ao dia.
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